Quando um pássaro cruza o céu, ele não pensa sobre o ar que sustenta suas asas. Ele simplesmente abre as asas e voa. Quando um peixe cruza o mar, ele não pensa sobre a água que envolve seu corpo. Ele apenas abre as nadadeiras e nada.

Algo semelhante acontece quando falamos. Nas conversas do cotidiano, geralmente não percebemos que utilizamos a língua portuguesa. Apenas naturalmente falamos.

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Mas pensar sobre a língua que falamos, e como a falamos, pode ser revelador segundo Caetano W. Galindo em “Latim em Pó – Um Passeio Pela Formação do Nosso Português”, livro lançado pela editora Companhia das Letras.

Ao apresentar a trajetória da formação língua portuguesa, Galindo oferece uma leitura sedutora de como o português se transformou em terras brasileiras: “A primeira coisa que é preciso ressaltar é que a verdade das verdades da linguística histórica é uma verdade desde sempre: as línguas mudam, o tempo todo.”

Entender a língua portuguesa, nascida do latim, é entender uma entidade viva em constante transformação: “As línguas mudam. O tempo todo surgem modos alternativos de dizer alguma coisa, formas mais velhas vão desaparecendo, destronadas por novas

variantes. E essa mudança, assim que começa a ocorrer, é sempre percebida como desvio, como aberração a ser evitada a qualquer custo. Mas o fato incontornável é que muito do que hoje é tido como refinado, elevado e sofisticado em algum momento foi visto como um desvio simplório e grosseiro da norma-padrão.”

Logo nas primeiras páginas de "Latim em Pó", Galindo alerta para a ingenuidade de se pensar que o português foi trazido para o Brasil pelos colonizadores em 1500 e, em solo brasileiro, recebeu a singela influência do vocabulário das línguas indígena e depois das línguas africanas dos escravizados. E assim, num jardim de rosas, num passe de mágica, surgiu o “português brasileiro”.

Mas os fatos revelam algo bem diferente, uma trajetória de trancos e barrancos: “A história da implementação da língua portuguesa no nosso território foi um drama. Nada tem da narrativa pacificada, meio oficial e meio preguiçosa, que nós mesmos costumamos adotar. O português correu, muitas vezes e durante muito tempo, o risco de desaparecer, suplantado por línguas nativas, que ao menos até o século 18 eram, em muitas situações, as mais usadas nas cidades do Norte e na vasta região dominada por São Paulo, tanto entre os brancos quanto entre os não brancos.”

O Brasil unificado que fala do português em todo seu território começa a aparecer somente após da Declaração de Independência, em 1823. Aos poucos o português vai deixando de ser uma língua restrita da elite colonial para dar corpo à

literatura, à imprensa e ganhar as ruas: “Para estudiosos da área, fica cada vez mais claro que as características da língua portuguesa falada no Brasil, e que a tornaram diferente da que vigora entre os portugueses, por exemplo, assim como a uniformidade do português falado em nosso país, decorrem de um processo histórico de deglutição em que o idioma europeu foi sendo aprendido de maneira improvisada, aproximada.”

Galindo cria uma impactante imagem desse aprendizado quando aponta que as crianças brasileiras aprendiam a língua portuguesa através da afetividade de suas mães indígenas e negras. Crianças que aprendiam o português no aconchego dos braços de suas mães. Crianças, invariavelmente, nascidas de estupros realizados pelos portugueses.

Professor da Universidade Federal do Paraná, o curitibano Caetano W. Galindo é considerado um dos grandes tradutores de língua inglesa em atividade no país. Sua tradução de “Ulysses”, de James Joyce foi agraciada com vários prêmios literários.

“Latim em Pó” é fruto de suas aulas ministradas ao longo de 25 anos de magistério. O “português certo” e o “português errado” passa longe do entendimento de Galindo em “Latim em Pó”: “Cada geração de falantes aceita todas as mudanças ocorridas antes de sua época como constituidoras de seu patrimônio linguístico. Mas a tolerância vai só até aí. As mudanças vindas com as novas gerações não são aceitas com a mesma docilidade e acabam marcadas como erros e violências contra o idioma.”

Assim como o ar para o pássaro, como a água para o peixe, a língua pode ser descrita como o ambiente onde as pessoas vivem. Um ambiente em que a comunicação acontece. Seja uma declaração de amor, um esbravejo de raiva, uma canção de ninar, um grito de revolta, uma receita de bolo, a descrição de desejo, uma história não acontecida, uma canção de felicidade, um apontamento de fome, um cobertor de aconchego, um suspiro de tristeza ou uma revelação afetiva: “Língua nenhuma, em momento nenhum, jamais esteve pronta.”

Imagem ilustrativa da imagem A língua portuguesa em constante transformação
| Foto: Divulgação

SERVIÇO

“Latim em Pó – Um Passeio Pela Formação do Nosso Português”

Autor – Caetano W. Galindo

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 232

Quanto – R$ 59,90 (papel) e R$ 29,90 (e-book)

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