Geralmente achamos que todas as famílias preservam a memória de seus antepassados. Normalmente imaginamos que os descendentes de imigrantes europeus que chegaram ao Brasil possuem muitas histórias do passado para contar.

Mas a veracidade revela que grande parte das histórias dos antepassados nunca foi preservada, virou fumaça. As memórias familiares estariam ancoradas muito mais em invenções do que em fatos documentais.


Em seu novo romance, “Inventar um Avô”, o escritor paranaense Miguel Sanches Neto, narra a jornada de um homem que procura resgatar a história de seus antepassados, imigrantes espanhóis que chegaram ao Brasil no início do século 20. Coletando pedaços de nebulosas informações, descobre que a história de seus avós virou poeira levada pelo vento.

Diante da falta de elementos reais e documentais, o personagem empreende outra jornada: a de inventar ficcionalmente uma história para o avô que nunca conheceu. Como não existe uma memória, ele precisa inventá-la – uma maneira extremamente poética de olhar para o passado.

Miguel Sanches Neto é autor de mais de 30 livros, entre eles “Chove Sobre Minha Infância” que integra a lista de obras literárias exigidas pelo vestibular da Universidade Estadual de Londrina em 2023 e 2024. Atualmente reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Sanches Neto fala a seguir sobre seu novo romance, “Inventar um Avô”, lançado pela editora Maralto.

O escritor paranaense Miguel Sanches Neto, narra a jornada de um homem que procura resgatar a história de seus antepassado
O escritor paranaense Miguel Sanches Neto, narra a jornada de um homem que procura resgatar a história de seus antepassado | Foto: Julio Cesar Prado/Divulgação


Em “Inventar um Avô” você apresenta a ideia de que quando não conhecemos nada sobre nossos antepassados, é necessário inventar algo sobre eles – ou mesmo inventá-los completamente. A memória familiar pode ser considerada uma ficção?
Toda memória guarda um componente ficcional, que pode ser maior ou menor dependendo das intenções do texto. Se a memória se ancora em documentos ou fotos, pode haver uma recuperação histórica minimamente fiel. Mas quando não há nada que comprove que os fatos poderiam ter existido, então o narrador tem que acreditar na ficção, de que ela, na sua generalidade, é potente o bastante para erguer um mundo similar ao real. Eu tenho pensado este romance como um elogio da ficção, do poder narrativo em detrimento do poder documental, pois ter documentos é próprio das classes mais abastadas, que podem criar uma genealogia segura de seu grupo, enquanto os periféricos, principalmente os analfabetos, de onde descendo, dependem totalmente do poder ficcional. A família do narrador de “Inventar um Avô” é de ordem ficcional, para frente e para trás, e este é o maior trunfo dos pobres. Não precisar corresponder à história documental.


Você, pessoalmente, realizou a busca por seus antepassados ou precisou inventá-los em “Inventar um Avô”?
Busquei, sim, a origem de meus antepassados. Muitos de meus parentes moram hoje em Londrina. Durante meses minha irmã e eu consultamos as listas de passageiros que chegaram ao porto de Santos, mas tudo foi em vão. Eu queria saber de onde viemos, mas a impossibilidade de definir quem nos antecedeu me levou a uma opção de construir um romance em que a história contada a partir de similaridades fosse maior do que a história factual. Buscar esta verdade ficcional é a tarefa de todo romancista. É uma verdade maior, que transcende a minha trajetória enquanto indivíduo. Meu avô, o espanhol Miguel Sánchez, é antes de tudo o que eu acredito que ele tenha sido do que uma imagem conservada dele. Meu avô é uma ficção. Eu descendo de uma ficção.

Você considera que, de alguma forma, estamos sempre ligados aos nossos antepassados, seja através da realidade ou através da ficção?
Eu estou ligado pelo nome. Meu nome repete meu antepassado. O nome de meu filho também repete um antepassado. Esta estratégia nomeadora é uma forma de tentar suspender a morte, a finitude do indivíduo. Estamos sempre de volta ao que nos antecederam, em uma estrutura cíclica, mágica. No meu romance, esta volta se dá como aproximação. Quem teriam sido eles? Se não tenho a menor informação sobre estas vidas, cabe a mim, que me confesso ficcionista, tentar uma versão que nos represente. Queremos saber de onde viemos. Eu vim de um vazio de linguagem e de imagens.


Em sua jornada, o personagem narrador de “Inventar um Avô” precisa colocar as mãos no passado para conseguir se abrir para o mundo presente. Essa jornada pode ser considerada uma jornada mítica?
Pode, sim. O narrador vive uma existência paralisada, sem poder avançar rumo à construção de uma família. Isso o leva a voltar ao passado incerto de seus ancestrais, para construir algum sentido. Somos seres de linguagem, precisamos de narrativas para existirmos, e um passado que não esteja delimitado por relatos não serve para nada. O narrador busca uma história possível em pessoas que tiveram o mesmo destino de seus parentes. É uma afirmação da trajetória dos espanhóis no Brasil. E guarda um sentido mais coletivo, de representação de um grupo, ao mesmo tempo em que delimita a passagem de meus avós, nesta mudança da Espanha para o Brasil.

Apesar de ser mais conhecido por sua produção como ficcionista, você lançou em fevereiro pela editora Patuá, “A Ninguém e Poesia Reunida (1991 - 2021)”. Qual seu interesse pela poesia?
Como ficcionista eu sou um poeta, um escritor que está preocupado com o uso certo de cada palavra, com o tratamento poético da escrita, e é isto que o leitor vai encontrar neste livro, um senso estético da linguagem, uma forma literária de falar e escrever. O narrador é alguém que tem um excedente de linguagem para representar a sua trajetória. O poeta está mais presente neste romance do que nos outros, enquanto uma voz que une pessoas. Eu quero comunicar humanidades em meus livros. Enquanto poeta, propriamente, continuo produzindo textos que talvez possam ainda render, daqui uns 10 anos, um novo livro, porque a poesia não é uma rotina para mim, é um acontecimento sobre o qual eu não tenho controle.

Serviço:

Imagem ilustrativa da imagem A invenção do passado
| Foto: Reprodução



“Inventar um Avô”
Autor – Miguel Sanches Neto
Editora – Maralto
Páginas – 160
Quanto – R$ 44,90