A literatura de Franz Kafka é um arremesso de pedras. Pedras arremessadas em direções variadas. Cabe ao leitor, entre uma narrativa e outra, se desviar das pedras. Ou aceitar uma pedrada na testa e refletir sobre o ferimento.

Existem centenas de estudos mundo afora tentando elucidar os arremessos de pedras da literatura de Kafka. Mas um dos melhores instrumentos de entendimento está nas próprias palavras do escritor tcheco, especialmente em seus diários.

Franz Kafka: os diários de 1909 a 1912 mostram a contradição que sempre o acompanhou, o ofício de escritor e o trabalho de burocrata
Franz Kafka: os diários de 1909 a 1912 mostram a contradição que sempre o acompanhou, o ofício de escritor e o trabalho de burocrata | Foto: Reprodução

Ao morrer em 1924, aos 40 anos de idade, deixou 13 cadernos manuscritos de diários. Deixou recomendações expressas ao amigo Max Brod que, após sua morte, todos seus escritos deveriam ser queimados. Max não cumpriu o pedido do amigo e hoje os diários podem ser lidos pelos admiradores da peculiar literatura de Franz Kafka.

A editora L&PM começa a publicar, pela primeira vez no Brasil, os diários completos de Kafka traduzidos diretamente do alemão. O primeiro volume, “Diários 1909 – 1912”, acaba de ser lançado. O segundo e terceiro volumes devem chegar às livrarias em 2020 e 2021 respectivamente.

“Diários 1909 – 1912” compreende os quatro primeiros cadernos diários escritos por Kafka. A ideia inicial do autor era manter dois cadernos paralelos, um para diário propriamente dito e outro para anotações que poderiam se transformar em contos, narrativas, novelas e romances.

Mas, na bagunça do cotidiano, Kafka não conseguiu manter essa distinção nos cadernos. Escreveu coisas do diário no caderno de anotações, escreveu anotações de narrativas no caderno de diário. Tudo se misturou e se tornou uma coisa só.

Assim é possível encontrar anotações íntimas e confessionais ao lado de fragmentos de contos. As notas da edição brasileira, baseadas nas notas da edição original alemã, oferecem um amplo leque de informações para o leitor se situar entre anotações íntimas e anotações literárias.

“Diários 1909 – 1912” revela o período inicial de Franz Kafka se aventurando na torturante contradição que o acompanharia por toda vida: o ofício de escritor e o trabalho de burocrata. Sente que o trabalho diário, o ganha pão burocrático, rouba-lhe tempo e energia que deseja gastar na literatura. Ao mesmo tempo, se sente um fracasso diante da literatura. Não consegue escrever aquilo que deseja escrever, as palavras certas não aparecem, as narrativas não se desenvolvem a contento. A derrota, o fracasso e o pessimismo se convertem no grande casulo kafkiano.

Enquanto esse casulo não se consuma, Kafka apresenta uma agitada vida social que envolve passeios, encontros e viagens. Utiliza, por exemplo, páginas e páginas para falar sobre as dezenas de espetáculos que assiste de companhias mambembes de teatro iídiche, sobre atores e atrizes, sobre os textos, sobre as conversas que ocorrem após as apresentações.

A estranheza, elemento que deu forma ao casulo kafkiano, se faz presente ao longo de outras páginas do diário. O relato de um homem que se sente estranho na família, estranho no trabalho, estranho nas relações sociais, estranho nas relações afetivas, enfim, completamente estranho no mundo. Ao completar 26 anos é capaz de escrever no diário a seguinte observação: “Jovens limpos e bem-vestidos ao meu lado na calçada recordam-me minha juventude e por isso me causam uma impressão desagradável.”

Através dos escritos de “Diários 1909 – 1912” é possível tentar, ou imaginar, entrar na cabeça de Franz Kafka. Entre corredores sem saída que se ramificam em outros corredores sem saída, é possível encontrar as seguintes palavras anotadas em 30 de novembro de 1911: “É um velho costume meu não deixar impressões puras, sejam elas dolorosas ou alegres, dispersarem-se beneficamente por todo o meu ser tão logo tenham atingido a pureza máxima, mas sim turvá-las e afugentá-las através de impressões novas, inesperadas e fracas. Não se trata de uma má intenção de prejudicar a mim mesmo, mas de fraqueza para suportar a pureza dessa impressão, fraqueza que, no entanto não é confessada, mas que prefere buscar uma saída, sob o silêncio interior ao invocar a nova impressão de modo aparentemente arbitrário, em vez de, o que seria a única coisa correta, revelar-se e chamar outras forças para apoiá-la.”

Para inundar de beleza o fracasso, inundar de pureza a derrota, inundar de luminosidade a incompletude, Kafka precisou ir além da criação de seu casulo: “Eu preciso da solidão para a minha escrita. Não como a solidão de um ermitão, isso não seria o suficiente, mas como a solidão de um homem morto.”

Imagem ilustrativa da imagem A genialidade do
fracasso
| Foto: Reprodução

Serviço:

“Diários 1909 – 1912”

Autor – Franz Kafka

Editora – L&PM

Tradução – Renato Zwick

Prefácio – Marcelo Backes

Páginas – 288

Quanto – R$ 44,90