São Paulo - Quase não deu tempo de entrar em nenhuma lista dos melhores filmes deste 2021, pelo menos as feitas por jornalistas e críticos brasileiros, já que a Netflix, por algum motivo inexplicável, decidiu programar a estreia de "A Filha Perdida" para o dia 31 de dezembro. Pois é, o último dia de dezembro deste 2021, uma data em que tradicionalmente muitas pessoas se dedicam aos rituais de despedida de um ano e os de entrada no seguinte, quase sempre cheia de desejos, sonhos, arrependimentos e promessas. Nada a ver com cinema.

Onde, aliás, esse longa-metragem merecia ser visto. Ele chegou a entrar em cartaz em alguns cinemas de cidades americanas selecionadas em meados de dezembro, mas o público brasileiro não teve essa chance. Aqui, foi direto para o streaming.

A Filha Perdida: dirigido por Maggie Gyllenhaal e com Olivia Colman no elenco, está sendo considerado um dos melhores filmes de 2021 que estreou tardiamente no streaming
A Filha Perdida: dirigido por Maggie Gyllenhaal e com Olivia Colman no elenco, está sendo considerado um dos melhores filmes de 2021 que estreou tardiamente no streaming | Foto: Netflix/ Divulgação

Mas isso é um problema de distribuição, e não desta resenha. Aqui, o que interessa é destacar que essa é uma estreia que não deve passar despercebida. "A Filha Perdida" é um filme original, profundo, bem realizado, tão agradável quanto desconfortável de assistir, um thriller psicológico de primeira. Imperdível.

Baseado no livro de mesmo nome lançado em 2006 pela escritora italiana que assina com o pseudônimo Elena Ferrante, é a estreia na direção e no roteiro da atriz americana Maggie Gyllenhaal, de "Secretária" (2002) e "Coração Louco" (2009). Tem Olivia Colman, a rainha Elizabeth 2ª, da Inglaterra, das temporadas 3 e 4 da série "The Crown", no papel principal.

Ela é Leda, uma inglesa de quase 50 anos que aluga uma casa numa praia da Grécia para passar uns dias sozinha, lendo e descansando na areia, tomando sorvete. Umas férias sem grandes emoções nem expectativas. Ela é uma acadêmica, especialista em literatura italiana, que dá aulas em "Cambridge, perto de Boston", nos Estados Unidos, como diz, sem tentar soar arrogante. Cambridge é a cidade onde fica a universidade Harvard, talvez a mais prestigiosa e concorrida do mundo.

Alguns dias depois de se instalar na praia onde pretende que nada demais aconteça, chega uma família americana grande e barulhenta. Uma das mulheres, grávida, se apresenta à inglesa e de cara pede a ela que mude sua espreguiçadeira de lugar, mais para o canto, de maneira que a família possa se espalhar e ocupar todo o espaço que gostaria. Leda se recusa. A mulher, indignada, sai xingando alto, como se não fosse aceitável que uma pessoa pudesse cogitar não ajudar uma família a ficar unida.

Mas Leda não é esse tipo de mulher. Ela, aliás, não é um "tipo" de mulher. É uma pessoa complexa, cheia de contradições, cuja história passada vai se revelando em flashbacks e mostrando tanto passagens da vida dela quanto suas várias versões.

Nessas cenas, a personagem é interpretada pela atriz irlandesa Jessie Buckley, relevada na última temporada da série "Fargo", em que interpretou a enfermeira serial killer Oraetta Mayflower. Ela não se parece fisicamente com Olivia Colman, mas as duas atrizes, apesar de não terem se encontrado nenhuma vez antes nem durante as filmagens, encarnaram a essência de Leda.

E Leda é uma personagem como nenhuma outra. Descobrimos, ao longo da história, que ela é mãe de duas filhas, e que a maternidade é um assunto incômodo para ela. O enredo revela a razão, o que faz o filme e a protagonista ganharem mais uma camada de complexidade.

O cinema e a literatura já apresentaram muitas versões de mães. A mais comum é a sofrida mas perdidamente apaixonada pelos filhos. Um bom exemplo recente é Alex, interpretada por Margaret Qualley, a jovem mãe abusada pelo marido na série "Maid".

Mas há mães cruéis também. Mães loucas, mães drogadas, mães egoístas. Mães generosas, mães amorosas. A maternidade, e em especial a relação mãe e filha, cheia de meandros, sempre foi terreno fértil para a ficção.

O que não é comum é que uma mãe seja todas essas coisas ao mesmo tempo, como aprendemos, aos poucos, sobre Leda, neste filme. Incomum também é que uma atriz apresente uma obra tão bem acabada quanto pessoal em seu trabalho de estreia como cineasta, como acontece com Maggie Gyllenhaal em "A Filha Perdida".

Um grande filme. Um grande filme feminino, feminista, de mulher. Esse, sim, um nicho em que há uma enorme lacuna.

Serviço:

"A Filha Perdida"

Onde: na Netflix

Elenco: Olivia Colman, Jessie Buckley, Dakota Johnson

Produção: EUA, 2021

Direção: Maggie Gyllenhaal