“A Esposa de Tchaikovsky”
O cinema russo nos dá um foco perturbador do século 19 sobre o casamento do venerado compositor Piotr Ilich Tchaikovsky e a devotada esposa
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 15 de maio de 2023
O cinema russo nos dá um foco perturbador do século 19 sobre o casamento do venerado compositor Piotr Ilich Tchaikovsky e a devotada esposa
Carlos Eduardo Loureço Jorge - Especial para a FOLHA
O autor russo Kirill Serebrennikov, após sofrer períodos de feroz censura nas mãos do governo do ditador Vladimir Putin, finalmente conseguiu participar pessoalmente do Festival de Cinema de Cannes há exatamente um ano, onde mostrou em competição “A Esposa de Tchaikovsky” (no original russo, Zhena Chaikovskogo), crônica sombria sobre a tumultuada relação matrimonial da devotada e depois desprezada esposa do compositor, na qual o tradicional voto conjugal "até que a morte os separe" é interpretado literalmente. Ao focar tão intimamente na mulher este relacionamento, o cineasta permite também que ela funcione como metáfora para outras formas de resistência à autoridade.
O filme tem uma história simples, embora não simplista, construindo uma catarse gradual a partir de um conflito primário, sobre o qual Serebrennikov pode criar todos os tipos de proezas cinematográficas – a fotografia, esquisita, bela, orgânica, é uma espécie de personagem que ganha vida própria. É a história de um mau romance ruim, ou um não romance, entre o compositor cujas obras estão entre as mais populares e celebradas (às vezes exageradamente) do período romântico clássico do século 19, e uma mulher tão apaixonada por ele, tão derrramadamente caída por seu ídolo, que em primeiro lugar ela pode ignorar a homossexualidade dele, bem como a falta de qualquer relacionamento ou química.
“A Esposa de Tchaikovsky” centra-se na personagem de Antonina Miliukova, jovem de posses consideráveis que secretamente se apaixonou pelo compositor famoso, escreveu-lhe várias cartas, pediu-lhe em casamento e concordou em casar com ele nessas condições, apesar de o autor de “O Lago dos Cisnes” ter dito claramente que nunca se apaixonaria por ninguém e que só queria uma espécie de amor fraterno, nunca apaixonado. A figura da mulher e depois viúva de Tchaikovsky era perfeita para um cineasta interessado na dissidência e em situações pessoais condicionadas por quadros repressivos de diversa índole. Neste caso, é a sociedade russa do final do século 19 e o papel das mulheres nessa sociedade que restringiu totalmente suas liberdades e desejos.
A compositora Miliukova é no filme mero instrumento para o retrato de uma mulher talvez obsessiva e obcecada por um ideal inatingível, mas dona de seus atos, de suas decisões, de seus erros e acertos. Serebrennikov a filma de maneira justa, apesar do fato de que ninguém, nem mesmo seu próprio marido, entender nenhuma de suas ações.
E você pode traduzir este argumento como sendo sobre um culto tóxico à personalidade – um tema pertinente para um artista russo dissecando seu país – com Antonina como a principal adepta, seu fanatismo levando a uma performance totalmente carismática de Alyona Mikhaylova.
E a maneira como sua paixão é rejeitada e sua reação firme – criando uma versão idealizada de Pyotr em seus sonhos – também a fazem parecer teimosamente incansável, de uma forma que pode refletir a liderança russa, bem como a resistência incansável dos cidadãos.
Evocando suas raízes teatrais de vanguarda, Serebrennikov muitas vezes pretende fazer de seus filmes uma experiência compulsivamente densa e intensa. Como aqui: “A Esposa de Tchaikovsky” se torna um conto assustador de desintegração mental em seu ato final, onde o diretor retorce fundo a faca para que Antonina se torne uma narradora não confiável antes que possamos ser sábios o suficiente para perceber. Suas escolhas também a deixam com muito mais dignidade do que a noção comum de seu destino, presa em um asilo psiquiátrico pelo resto de seus anos.