Terminou nesse domingo (24) em Cannes, Cote d’Azur, a 73ª edição do mais fascinante, festivo e determinante evento cinematográfico desta galáxia. E a Palma de Ouro foi para...ninguém.

Este ano não houve tapetes vermelhos no tradicional festival de Cannes nem o agito das festas, centenas de paparazzi aos empurrões.
Este ano não houve tapetes vermelhos no tradicional festival de Cannes nem o agito das festas, centenas de paparazzi aos empurrões. | Foto: iStock

Neste 2020, o ano em que vivemos em perigo, não houve tapetes vermelhos com suas extravagâncias, hotéis e restaurantes charmosos superlotados, o agito das festas, centenas de paparazzi aos empurrões.

A Covid-19 neutralizou todas as tentativas e sucessivas fórmulas para que o evento ocorresse até o final do ano no formato presencial de sempre. Prevaleceu o bom senso. O diretor da mostra, Thierry Fremaux, entre propostas de adiamento e sugestões bizarras (um festival online ?!), anunciou afinal nova estratégia, uma solução original de colaboração e sobrevivência : vários filmes inéditos selecionados para esta edição que não aconteceu serão apresentados – a lista será conhecida em junho – ao longo do segundo semestre nos festivais de Veneza, Deauville, San Sebastián (os três em setembro) e Nova York.

Mas mesmo com as anunciadas – e já em andamento – aberturas italiana (Veneza), francesa (Deauville) e espanhola (San Sebastián), ainda não se sabe - e por enquanto o futuro mais imediato ao vírus pertence - que efeitos outros cancelamentos causarão àquilo que se pode chamar de “ecossistema cinematográfico global” se caírem essas outras peças em efeito dominó.

Veneza confirmou e está trabalhando forte com as datas de 2 a 12 de setembro, daqui a noventa dias. Mas há incomodas incógnitas: mesmo velozmente corrigida a situação sanitária na Europa, quem garante que equipes inteiras de filmes selecionados estariam dispostas a aglomerações – são 4 mil pessoas em média reunidas por duas semanas – em um dos epicentros (a região do Vêneto) mais devastadores da infecção? Não esquecendo que, cientificamente, uma segunda onda virótica não estaria descartada no continente.

Sem festivais como os citados (e mais Toronto, 10 a 20/9), qualquer ano deixaria o cinema alternativo (ao cinemão hollywoodiano) a descoberto, já que são trampolins, vitrines para lançamentos, janelas para Globo de Ouro e Oscar, plataformas para circuitos independentes e artisticamente ambiciosos.

Impossível imaginar a triunfante trajetória internacional de “Parasita” sem o impacto da Palma de Ouro e sua coleção de prêmios antes de chegar já consagrado aos Oscar. Ou a carreira multipremiada dos brasileiros “Bacurau” e “A Vida Invisível”.

É preciso pensar também que em festivais de grosso calibre como os europeus (Berlim incluído) não há somente competição e projeções especiais. Ali também é lugar de negócios, compra e venda de filmes e projetos, acerto de coproduções. E o movimento do mercado mundial segue seu curso natural. Sem essas grandes caixas de ressonância do cinema mundial, e sem seu mercado internacional, o cinema ficará paralisado, sem confiança, com grande bloqueio de produções. Cannes fará o seu “Marché du Film” online, de 22 26 de junho; não será a mesma coisa, evidente, e vai funcionar como amargo paliativo.

Cinema em streaming é solução para agora e, momentaneamente ,está salvando o cinema. Apenas pontual, passageira, e há quem converse sobre uma nova ordem em relação ao consumo e recepção do cinema. O que pode mudar é a maneira como os filmes serão feitos. O "Dogma-95", de Lars von Trier, democratizou o cinema há duas décadas por meio do suporte digital. A Covid-19 não obrigará a fazer filmes diferentes – o grande publico correrá desenfreado para ver o último "007" ou o novo prodígio técnico do selo Marvel. Filmes sobre epidemias e quarentenas poderão ser feitos em breve, mas se forem produzidos, promovidos e vendidos de outras maneiras. E isto afetará tanto o pequeno produtor independente quanto as grandes corporações de Hollywood.