"Caminhos da Memória: no filme distópico e complicado, o futuro não é tão brilhante
"Caminhos da Memória: no filme distópico e complicado, o futuro não é tão brilhante | Foto: Divulgação

Uma bela – e fatal – dama entra no escritório sombrio de Nick Banister, ‘private eye’ amarrotado pela vida. A veterana ajudante dele não tem dúvidas daquilo que a desconhecida representa, mas o detetive, idiota que é, fica imediatamente caidaço, sem saber mas sabendo que está prestes a se meter em sérios apuros. Você, espectador, já viu esta configuração muitas vezes em incontáveis filmes de um dos mais representativos gêneros do cinema hollywoodiano. E então começa “Caminhos da Memória” (em exibição em Londrina). Enquanto esses exemplares de noir estavam firmemente fincados nas décadas de 1930, 40 e 50, “Reminiscence” (título original) se passa num incerto mas próximo futuro distópico, criando um cenário de ficção científica que realmente se inclina para suas influências, para o bem ou para o mal.

Nada disso é exatamente novo. Ficção científica e noir se misturaram de maneira harmoniosa há quase quarenta anos no “Blade Runner” de Ridley Scott. Mas “Reminiscence” está tão comprometido com as metáforas do gênero que logo parece estar constantemente piscando para o público. Além disso, o cenário do filme nunca parece tão futurista quanto deveria. Todos aqui se comportam como se fossem de uma época passada. Sendo justo: tudo o que é velho é novo de novo, e talvez as pessoas do futuro do filme estejam agindo nostálgicos pelos anos 1930-50 da mesma forma que as pessoas no início dos anos 2000 começaram a bajular os anos 1980.

Nesta reminiscência distópica intrigante e complicada, o futuro não é tão brilhante. Na verdade é tão triste – um amanhã inundado pela mudança climática e pelo estresse pós-traumático – que todos pagam pelo privilégio de se refugiar em suas memórias soterradas em tempos melhores. Numa Miami parcialmente inundada (não há maiores detalhes) num grande armazém encardido, as pessoas vão em busca de suas lembranças deitadas nas águas rasas de uma banheira com um halo eletrônico, encontrando flashes vívidos daquilo que já passou por suas cabeças, flashes projetados holograficamente enquanto dormem em busca de mágicas experiências perdidas. Flashbacks, em resumo. Um parentese: esta não deixa de ser, obviamente, a última metáfora do cinema para si mesmo. O que são os filmes senão tecelões da memória coletiva ? É uma conexão que se torna evidente antes do filme apresentar uma versão mais antiga da tecnologia, enviando essas visões do passado para uma parede branca com um projetor piscando em preto e branco.

Quem comanda este dispositivo é o detetive Nick (Hugh Jackman), coadjuvado por sua endurecida parceira Watts (Thandie Newton). Dublê de mercador de sonhos e detetive particular, ele desfia seu repertório de frases tipo “o passado pode assombrar um homem”, frases que sublinham sua sabedoria narrada. Nick é do tipo amador, e no momento ele investiga o desaparecimento de uma paixâo: a bela e misteriosa Mae (Rebecca Ferguson), a cantora que um dia entrou furtivamente em seu escritório e em sua vida miserável, supostamente atrás de umas chaves. Depois de alguns dias felizes juntos, ela desaparece. Problemas dela? Ou Nick é um idiota se apaixonando pela esquemática e vintage ‘femme fatale’?

E por aí vai a sina de Nick, envolvido numa trama tão cheia de vãos e desvãos como naquela ótima literatura de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, um daqueles detetives pouco ou nada heróis, seres humanos erráticos, surfando com dificuldade nas ondas da violencia e da corrupção, com ou sem princípios morais. Para quem assiste o filme com olhos mais generosos, os prazeres são diversos mas não exatamente consistentes. O material de homenagem ‘noir’ é de terceira, quarta, talvez quinta geração, ornamentado em trajes formais de ficção científica.

Infelizmente, quanto mais denso e profundo se torna o mistério Mae, mais duro fica “Caminhos da Memoria”. O roteiro da diretora Lisa Joy torna-se meio desajeitado e até confuso. De repente fala-se muito da gananciosa classe alta, dona da cidade que constrói terras áridas para si. Sabe-se que elementos de corrupção e divisão de classes sempre estiveram embutidos no submundo do ‘noir’, mas “Reminiscense” nunca sabe exatamente o que fazer com isso. Por isso e por outros detalhes, o filme é denso e congestionado, mas um tanto cansativo. Informação especialmenre útil: Lisa Joy, roteirista e diretora, é casada com Jonathan Nolan (co-roteirista do filme). Cunhado de Christopher Nolan. Nenhum espanto, portanto, diante de idéias e formas déja vù.