Parece necessário repetir que a literatura da escritora canadense Rachel Cusk pode ser descrita como a arte de caminhar pela superfície da vida com toda normalidade do mundo para, a cada passo, afundar levemente os pés em camadas e camadas mais profundas. Tudo isso sem grandes impactos ruidosos, apenas no calmo caminhar cotidiano das situações humanas de todos os dias.

Mas a literatura de Rachel Cusk também pode ser descrita como a arte de voltar para casa, todos os dias, com os sapatos sujos com algum tipo de percepção. Percepções com elementos grudados na sola dos sapatos que precisam ser entendidos como narrativas de vida. Reflexões que levam ao entendimento do que as pessoas fizeram da própria vida ao longo da existência.

Isso fica evidente em “Mérito”, novo romance da autora lançado pela editora Todavia. O volume encerra a trilogia “Kudos” iniciada com a publicação de “Esboço” (2019) e “Trânsito” (2020).

O último volume da trilogia, “Mérito”, segue o mesmo ritmo e estilo dos volumes anteriores com a personagem narradora, a escritora Faye, conversando com todas as pessoas que encontra pelo caminho nas mais diferentes situações.

Rachel Cusk: no livro "Mérito" a atenção recai sobre vozes femininas nos seus mais variados conflitos e impasses
Rachel Cusk: no livro "Mérito" a atenção recai sobre vozes femininas nos seus mais variados conflitos e impasses | Foto: Siemon Scamell-Katz/Divulgação

A diferença é que, se nos volumes anteriores Faye encontrava pelo caminho pedreiros, estudantes, cabeleireiras, executivos, fotógrafos e amigas, em “Mérito” ela encontra pelo caminho figuras do universo literário: escritores, editores, tradutores e leitores.

A narradora segue caminhando pelo mundo, vivendo o cotidiano e conversando com quem encontra pela frente. Conversando com pessoas ao acaso, sem relações entre si. Aquilo que num primeiro momento parece uma sucessão de conversas isoladas e aleatórias, num segundo momento passa a revelar a trajetória oculta da narradora.

Os personagens que atravessam o caminho de Faye possuem a consciência de que narrar suas existências ao outro confere sentido às suas vidas. E, para narrar, precisam entender de onde suas vidas partiram e aonde chegaram até momento presente. Precisam pensar também como suas escolhas estão atreladas às escolhas de outras pessoas e como a relação que estabelecem com o outro determinam as escolhas. Mesmo que, em alguns momentos, “pareça errado a vida inteira estar baseada na escolha”.

A voz narradora de “Mérito” não é aquela que fala, mas aquela que ouve. Como se para o narrador não fosse mais necessário ter uma voz, mas ouvidos para ter acesso a outras vozes. E ao reproduzir o que ouve, transforma sua própria narrativa em narrativa alheia.

Nas vozes reproduzidas em “Mérito”, a atenção recai sobre vozes femininas em seus mais variados conflitos, impasses e dúvidas da condição da mulher no mundo atual. Cada personagem que apresenta a leitura da própria história está envolvida por percepções nada felizes sobre trabalho, casamento e filhos. Representam mulheres que nunca possuem a possibilidade de saírem vencedoras de qualquer situação que envolva casamento, filhos e trabalho. O universo masculino sempre se revela maior, mais estruturado e bruto, do que qualquer tentativa de paz e igualdade.

Nos volumes anteriores, “Esboço” e “Trânsito”, a personagem narradora Faye, ao ouvir as histórias das pessoas que encontrava pelo caminho tinha a consciência de que a narrativa mostrava, inevitavelmente, pessoas sob uma luz favorável de contar sua própria história em detrimento à verdade. Cada personagem, ao narrar sua própria história, tende a favorecer seus sentimentos, feitos e sentidos: “O desejo do narrador vencer faz com que a verdade da história seja sacrificada”.

Em “Mérito” a atenção de Rachel Cusk não recai sobre as personagens comuns que geralmente sacrificam a verdade para construir a narrativa de uma vida imaginária que se distancie do erro e do fracasso. Faye se dispõe a ouvir os profissionais da narrativa (escritores, editores e tradutores).

E assim com as pessoas comuns sacrificam a verdade para construir uma narrativa a seu favor, com a devida parcialidade dos fatos, os profissionais da narrativa igualmente realizam o mesmo processo. A única diferença está no grau de elaboração. Não mais interessa fatos e sentimentos, mas como fatos e sentimentos são narrados: “Não existe esconderijo melhor do que num lugar mais próximo possível da verdade, algo que todos os bons mentirosos sabem.”

Nascida no Canadá, em 1967, Rachel Cusk, passou a infância nos Estados Unidos e fixou residência na Inglaterra durante a juventude. Autora de mais de uma dezena de romances, é considerada uma das grandes vozes da literatura marcadamente contemporânea.

Imagem ilustrativa da imagem A deselegância da verdade no livro de Rachel Cusk

Serviço:

“Mérito”

Autora – Rachel Cusk

Editora – Todavia

Tradução – Fernanda Abreu

Páginas – 192

Quanto – R$ 59,90 (papel) e R$ 46,90 (e-book)