Marcos Losnak
Especial para a Folha2
Com 12 anos de idade, Joseph, Igor e Nourdine frequentam a mesma escola. O tormento do trio é professor de francês, senhor Crastaing, que há 30 anos atormenta seus alunos com autoritarismo e rigidez. Mas os garotos não sofrem passivamente, dão o troco fazendo desenhos em que o professor é execrado.
Certo dia as coisas ficam pretas, o senhor Crastaing intercepta um desses desenhos que percorria clandestinamente a sala de mão em mão. Nele aparece um exército armado perseguindo o professor com a seguinte palavra de ordem: ‘‘Crastaing, bundão, a classe terá tua pele!’’
A autoria do desenho cai nas costas de Joseph, Igor e Nourdine. Como consequência, o trio recebe uma castigo torturante: escrever uma redação para o dia seguinte. Tema: ‘‘Certa manhã vocês acordam e constatam que durante a noite foram transformados em adultos. Sofregamente, precipitam-se no quarto de seus pais. Eles foram transformados em crianças. Continue a história.’’
Esse é o pontapé inicial do enredo de ‘‘Esses Senhores, os Meninos’’, mais recente romance do escritor francês Daniel Pennac. Lançado pela Editora Rocco, o livro segue o estilo consagrado de Pennac, o fino tecido de humor costurado com coloridas linhas de ironias. Mesmo utilizando um tema batido, onde crianças e adultos trocam de papéis, realiza uma abordagem refrescante enlouquecendo a ordem e incorporando elementos surrealistas.
O grande lema de Crastaing para as redações é uma espécie de lei inviolável: ‘‘imaginação não é mentira’’. Os garotos passam o resto do dia tentando arrancar de seus cérebros um texto convincente para evitar novos castigos. Atormentados entre a difícil tarefa e o ódio ao professor, acabam acordando no dia seguinte como adultos, vivendo realisticamente o tema da redação. Assustados, correm para o quarto dos pais e constatam a tragédia, eles voltaram a ser crianças. Unidos entre dezenas de brigas, Joseph, Igor e Nourdine resolvem partir em busca do grande culpado, o autoritário mestre. A confusão assume proporções delirantes.
Embora Crastaing seja o mais temido professor da escola e o maior defensor dos valores familiares, é um assíduo frequentador da chamada ‘‘alameda das mulheres’’, a zona de prostituição da cidade. Os meninos, transformados em senhores, partem em busca do mestre para o acerto de contas. Colocam os pais na frente da televisão, para uma anestesia cotidiana, e enchem a cara de uísque, para uma anestesia noturna. Como o melhor lugar para encontrar o culpado é ‘‘alameda das mulheres’’, o trio parte em busca de vingança.
Narrada em várias vozes, a história deixa evidente que a postura autoritária de Crastaing possuía raízes profundas. Quem desvenda o mistério são as prostitutas, as melhores psicólogas do universo masculino. O professor prega o ideal familiar que não viveu, está em busca da infância perdida, desloca para os alunos aquilo que não consegue realizar. Um ideal muito distante da realidade de Joseph, Igor e Nourdine.
Igor é órfão de pai. Mora com a mãe, uma viúva desolada que trabalha como conselheira conjugal em revistas femininas. O menino visita semanalmente o cemitério e conversa com o fantasma do pai. Nourdine é filho de imigrantes árabes. A mãe fugiu de casa com o carteiro. Mora com o pai, um melancólico taxista que sonha tornar-se um grande pintor. Joseph é o único dos três que mora com pai, um alfaiate judeu, e a mãe, uma católica fervorosa.
Pela sua experiência de vida, Daniel Pennac possui familiaridade com a realidade das crianças no processo de ensino. Nasceu em 1944 a bordo de um navio que passava por Marrocos. Filho de um oficial colonial francês, passou a infância entre Europa, África e Ásia. Por influência do pai integrou o exército mas acabou abandonando a carreira militar para ser professor de francês em escolas públicas, profissão que exerce até hoje. Começou a publicar seus escritos em 1973, inicialmente obras infanto-juvenis, posteriormente romances de grande sucesso como ‘‘O Paraíso dos Ogros’’, ‘‘A Pequena Vendedora de Prosa’’, ‘‘O Senhor Malausséne’’ e ‘‘Como um Romance’’.
Neste último, publicado pela Editora Rocco em 1993, Pennac realiza uma viagem pelo mundo da leitura e registra o que chama de ‘‘Direitos do Leitor: ‘‘1) O direito de não ler; 2) O direito de pular páginas; 3) O direito de não terminar o livro; 4) O direito de reler; 5) O direito de ler qualquer coisa; 6) O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível); 7) O direito de ler em qualquer lugar; 8) O direito de ler uma frase aqui e outra ali; 9) O direito de ler em voz alta; 10) O direito de calar.’’
‘‘Esses Senhores, os Meninos’’ possui uma atmosfera de liberdade semelhante àquela presente na literatura de outros dois escritores franceses, Queneau e Prévert. Mestres que sempre deixaram claro que ‘‘imaginação não é mentira’’.
Esses Senhores, os Meninos – De Daniel Pennac, Editora Rocco, tradução de Raquel Gutiérrez, 192 páginas, R$ 22,00.