Não se lê os textos de Hilda Hilst impunemente.
Essa afirmação parece estar próxima da unanimidade tanto entre críticos quanto entre leitores da literatura de Hilda Hilst (1930 - 2004). Uma afirmação que permeia "A Intensa, Extremada, Delirante Hilda Hilst", obra da jornalista Ana Lúcia Vasconcelos.

Ana Lúcia Vasconcelos na Casa do Sol em 1982: amiga de Hilda Hilst desde os anos 1960, jornalista lança livro que trafega entre vários gêneros
Ana Lúcia Vasconcelos na Casa do Sol em 1982: amiga de Hilda Hilst desde os anos 1960, jornalista lança livro que trafega entre vários gêneros | Foto: Salomão/ Divulgação



Lançado com apoio do FICC (Fundo de Investimentos Culturais de Campinas), o livro engrossa a onda de redescoberta da obra da escritora paulista. Diferente de outros livros, "A Intensa, Extremada, Delirante Hilda Hilst" traz uma narrativa que mistura memórias, ensaio e biografia a partir da ótica de alguém que conviveu com Hilda na lendária Casa do Sol.

Ana Lúcia Vasconcelos conheceu Hilda em 1968 e acompanhou sua trajetória ao longo das décadas. Foi uma das amigas que estavam ao lado da escritora no leito de hospital quando ela faleceu em 2004.
A seguir, Ana Lúcia Vasconcelos fala sobre o livro e também sobre a vida e a obra de Hilda Hilst.

"A Intensa, Extremada, Delirante Hilda Hilst" trafega entre vários gêneros como memórias, ensaio e biografia. Qual foi sua intenção ao escrever o livro?
Fui muito amiga de Hilda. Eu a conheci em 1968, depois de ela ter se mudado para a casa que chamou de Casa do Sol. Fiz muitas entrevistas com Hilda, convivi com ela nos áureos tempos de sua vida e seus amigos na Casa do Sol, éramos um grupo maravilhoso. Depois de muitas idas e vindas decidi que o livro teria dois momentos. O primeiro seria minhas memórias da Hilda. O segundo seria um ensaio sobre sua obra com citações de críticos de várias épocas falando sobre ela, e entrevistas minhas e de outros jornalistas sobre seu processo criativo. Os elementos biográficos entram também como consequência da trajetória da Hilda. A vida dela sempre foi misturada com sua obra. Enfim, é difícil falar sobre a Hilda sem contar sua vida porque ela mesma fazia isso. O livro foi sendo criado com muita pesquisa durante treze anos e pretende ser uma introdução à obra nada fácil da Hilda Hilst, através de meu testemunho e da minha convivência com ela e os amigos da Casa do Sol.

Como você descreve, a partir de sua convivência com a escritora, a essência da literatura de Hilda Hilst?
Eu diria que a essência da literatura da Hilda é a busca do sagrado, de Deus, este que ela chama de tantos nomes como Grande Obscuro, Cão de Pedra, Sorvete Almiscarado, Tríplice Acrobata, O Mudo Sempre e Sumidouro, entre outros. Aliás, ela trata em sua obra de temas como a vida, a morte, o amor, Deus, da alma e tudo isso numa linguagem desarticulada, inovadora, revolucionária. Ela mesma reconhecia que sua proposta era de uma revolução interior e disse numa das entrevistas que me concedeu: "Comecei me desestruturando depois de vinte anos de poesia arrumada. E esta linguagem ordenada, de comportamento que quero desordenar, reflete a época, o momento visceralmente conturbado. É preciso dominar uma certa desordem para que aconteça alguma novidade real dentro de você. Há uma reformulação da linguagem como deve haver uma reformulação de comportamento". Hilda considerava que a morte é a única situação transcendente do homem, a problemática mais importante do homem e queria, com sua criação literária, comunicar isso ao outro: "Você é imortal, não receie a morte, em sua imortalidade, cada um de nós preservará a sua individualidade." Ela queria chamar a atenção, por meio da literatura e das suas experiências psíquicas, para o inadiável, para a premência de se refazer as tarefas prioritárias do homem. Com seus textos pretendia que o leitor a seguisse no processo de autoconhecimento. Pretendia realizar uma revolução interior nas pessoas, queria deixar um recado: você tem uma alma imortal e a consciência disso deveria ser a coisa mais importante para o ser humano.

Ana Lúcia Vasconcelos: "A narrativa de Hilda Hilst não é linear, não é uma história com começo, meio e fim, mas um relato todo fragmentado, estilhaçado com personagens múltiplos, tripartidos"
Ana Lúcia Vasconcelos: "A narrativa de Hilda Hilst não é linear, não é uma história com começo, meio e fim, mas um relato todo fragmentado, estilhaçado com personagens múltiplos, tripartidos" | Foto: Marília Vasconcelos/ Divulgação


Em seu relato há situações em que Hilda Hilst aparece angustiada por não ser lida pelo grande público, angustiada por sua literatura não ser compreendida. Essa angústia acompanhou Hilda por muito tempo?
Sim, acompanhou durante toda sua vida. Ela tinha uma grande tristeza de não ser lida, não ser compreendida e um dia eu a vi chorando por causa disso. E ela não era lida por várias razões. Primeiro porque seus livros eram em geral editados por um artista maravilhoso - o Massao Ohno - que fazia lindas publicações, mas não distribuía. E segundo porque a escritura dela não é fácil mesmo. Sua narrativa não é linear, não é uma história com começo, meio e fim, mas um relato todo fragmentado, estilhaçado com personagens múltiplos, tripartidos. E os temas também são de alto teor metafísico, o que sem dúvida afasta muitos leitores que não conseguem seguir seu trajeto delirante de muita intensidade. Ela não entendia porque as pessoas achavam seus textos tão complicados e dizia que não sabia fazer de outra forma porque na verdade para ela a vida era complicada, não dava para fazer um esquema arrumado para conter a vida. De repente tudo transborda.

Você considera que, nas obras eróticas que publicou na década de 1990, Hilda tinha a intenção de ser popular, de atingir um maior número de leitores?
Não sei se para ser mais popular ou como resposta aos editores que também reclamavam de sua escritura e pediam algo mais digerível. Numa entrevista a TV Cultura, cujo vídeo está disponível no Youtube, ela diz à repórter que na verdade o "Caderno Rosa de Lori Lamby" era uma banana para os editores porque, depois de ter se dedicado com afinco, a um trabalho sério de quarenta anos, não tinha ainda, àquela altura, uma editora de porte para editar sua obra. E então dá de presente ao público um livro erótico e depois mais dois que vão compor uma trilogia. A partir daí ela de fato fica mais conhecida e seus livros posteriores ganham mais leitores. E finalmente em 2001 a editora Globo se interessa e publica suas obras completas. Tudo indica que a estratégia funcionou em vários sentidos.

O que mudou nos últimos anos quando seus livros passaram a ser reeditados e ela receber múltiplas homenagens? Você considera que o leitor de hoje está mais preparado para a literatura desenvolvida por Hilda?
Não posso dizer que não porque a partir da reedição de suas obras pela editora Globo seus livros começaram a vender, porque, evidente, estavam sendo distribuídos pelo país. Aliás, antes disso, a internet desempenhou papel importante na divulgação de sua obra. Seu primeiro site "Angelfire" - criado por Yuri Vieira -, a colocou na rede e então começou todo um interesse pelos seus livros. Hilda começou a ser conhecida. Na sequência, começaram também as traduções de obras para vários idiomas. Ou seja, em vida, ela já viu seu trabalho começar a ser reconhecido e elogiado por críticos estrangeiros a ponto de ela não ser mais considerada uma escritora maldita, mas bendita. Hoje ela está sendo editada pela Companhia das Letras, foi alvo de homenagens em todo o país. Especialmente agora em 2018, quando foi a homenageada da FLIP - Festa Literária de Paraty.

Serviço:
"A Intensa, Extremada, Delirante Hilda Hilst"
Autora - Ana Lúcia Vasconcelos
Editora - Edição do Autor
Páginas - 232
Quanto - R$ 20
(O livro pode ser adquiro através da página do Facebook "A Intensa, Extremada, Delirante Hilda Hilst de Ana Lúcia Vasconcelos")

Imagem ilustrativa da imagem A carne da alma
| Foto: Reprodução