A intensidade em uma mãe que abraça seu filhote recém nascido pode ter a mesma intensidade em que uma mulher abraça um filhote de cachorro recém adotado.

Algo que podemos chamar de amor maternal. Ou amor incondicional. Um sentimento que se tornou padrão institucionalizado e cultuado socialmente. Mas nem sempre mães vivem esse padrão. Há uma constelação de sentimentos que fogem da maternidade idealizada.

Pilar Quintana é autora de um dos livros mais desconcertantes da literatura latino-americana sobre a maternidade
Pilar Quintana é autora de um dos livros mais desconcertantes da literatura latino-americana sobre a maternidade | Foto: Beatriz Perez/Divulgação

A escritora colombiana Pilar Quintana resume a questão da seguinte forma: “Minha sensação é que nossas mães e avós não nos contaram a história completa. Falavam da maternidade como se fosse uma coisa idílica e maravilhosa, um estado de realização e pureza no qual não cabiam as emoções negativas ou feias”. E completa que, a ideia publicitária da maternidade alimenta a falsa ideia de mães sempre lindas e felizes.

Pilar Quintana é autora de, “A Cachorra”, um dos romances mais desconcertantes da literatura latino-americana contemporânea sobre a maternidade. Uma obra que não tem pudores em expor emoções carregadas de ódio, maldades e vinganças que atormentam o amor de mãe em suas contradições.

Lançado pela editora Intrínseca, “A Cachorra”, é primeiro livro de Pilar publicado no Brasil. Traz a história de Damaris, uma mulher que sempre desejou ser mãe, mas nunca conseguiu engravidar.

Quando a cachorra da vizinha morre envenenada deixando uma ninhada recém nascida, Damaris resolve adotar um dos filhotes, uma fêmea. Como a cachorrinha ainda nem abriu os olhos, Damaris se desdobra em carinhos e cuidados. Passa a chamá-la de Chirli, nome que sonhava dar à filha que nunca teve. Para desgosto do marido, Damaris passa a cuidar da cachorra como legítima filha amada.

Com o tempo a cadela cresce e começa a ter comportamentos que desagradam a “mãe”. Comportamentos que não retribuem o amor incondicional de mãe. E assim Damaris começa a viver sentimentos contraditórios e distantes dos padrões maternos idealizados. Sentimentos que envolvem ódio, raiva, violência, vingança e maldades. Sentimentos que afloram traumas e tragédias de sua infância.

A transformação do carinho e do o amor em ataques de raiva e ódio aponta para a face escura e oculta da maternidade: “Assustada, a cachorra deu um pulo e depois lançou a Damaris seu olhar de cachorro perdido, ou talvez aterrorizada, e começou a se afastar dela, da que antes tinha sido sua aliada e agora cometia contra ela a maior das traições. Tinha o rabo entre as pernas e a cada instante virava a cabeça, vigiando sua retaguarda, e Damaris teve a impressão de que agora sim havia se rompido entre ambas algo irreparável. Ao contrário do que esperava, isso lhe doeu.”

Essa face oculta ganha maior proporção quando a cadela consegue aquilo que a personagem nunca conseguiu: engravidar. O ciúme nasce e se espalha como enfermidade: “Para Damaris foi como um soco no estômago: sentiu que estava ficando sem ar. Não conseguiu nem sequer se negar a aceitar o fato, porque era evidente. A cachorra tinha as tetas aumentadas e a barriga redonda e dura. Era inacreditável que tivesse sido o marido a anunciar isso.”

Pilar Quintana concebeu o romance logo após o nascimento de sua primeira filha em 2017. Escreveu suas páginas enquanto amamentava a criança. Nascida em 1972 na cidade de Cali, é autora de outros três romances, “Cosquillas en la Lengua” (2003), “Coleccionistas de Polvos Raros (2007) e “Conspiración Iguana” (2009), além do volume de contos “Caperucita se Come al Lobo” (2012). “A Cachorra” foi indicado à vários prêmios literários mundo afora.

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Serviço:

“A Cachorra”

Autora – Pilar Quintana

Editora – Intrínseca

Tradução – Livia Deorsola

Páginas – 160

Quanto – R$ 34,90 (papel) e R$ 22,90 (e-book)