Em Londrina a partir desta quinta-feira (23), “A Baleia” é mesmo uma peça filmada, e não tem pretensões formais diferentes: o cenário é um cenário, a interpretação é a interpretação e os monólogos chegam sempre rápidos. É baseado em texto teatral homônimo do americano Samuel D. Hunter, dramaturgo da nova geração que coescreveu o roteiro.

Seu personagem central é vivido por um ressuscitado Brendan Fraser, que faz com que o filme seja pequeno sem ele – sem dupla interpretação, por favor. O problema é a direção de Aronofsky. Em “The Whale” o espectador sente a paixão do diretor pelos espaços fechados, pelos perdedores; mas também sua propensão ao sentimentalismo, barato e complicado, alimentado por um texto inundado de simbolismo óbvio.

Fraser interpreta Charlie, um recluso professor de redação (online, com a câmera desligada), com seus cento e muitos quilos cujos excessos bulímicos o levam à beira da morte. Preso ao sofá, ele é visitado diariamente por sua amiga e confidente Liz (Hong Chau), enfermeira determinada que o ajuda a lidar com a precária condição física, mesmo quando sua dor profunda está enraizada em espessa tapeçaria de cicatrizes emocionais. Traumatizado por uma perda trágica e sentindo o fim de seus dias, Charlie tenta se reconectar com a filha de 17 anos, Ellie, mas ele se sente esmagado pelo insuportável tempo perdido.

Outro personagem é um homem bíblico redundante chamado Thomas (Ty Simpkins). Em um elenco tipicamente à feição de Aronofsky, a filha de Charlie é interpretada por Sadie Sink, de “Stranger Things”, que traz uma energia decente em papel de adolescente-clichê. O trauma de Charlie – a raiz de seu vício em comida e seu afastamento de Ellie – vem da perda de seu namorado, um estudante por quem ele deixou a mãe de Ellie.

Esta situação desenrola-se inteiramente dentro do apartamento de Charlie e permite a Aronofsky retomar o seu interesse em trabalhar com espaços e situações claustrofóbicas, algo que transparece em filmes como “Réquiem para um Sonho” (seu único grande filme) ou “A Mãe”, embora aqui o realizador nova-iorquino se distancie da experimentação formal para abraçar uma encenação mais clássica, mais ortodoxa.

Brendan Fraser em 'A Baleia": seu prsonagem no filme é um professor recluso e à beira da morte por seus cento e tantos quilos
Brendan Fraser em 'A Baleia": seu prsonagem no filme é um professor recluso e à beira da morte por seus cento e tantos quilos | Foto: Divulgação

No filme, o perfil severamente obseso de Charlie/Fraser é acentuado pelo departamento de efeitos protéticos especiais, deixando seu rosto e sua voz livres de qualquer sensação de estranheza. De alguma forma, surgindo dos pixels, seu desempenho é estranhamente belo, um daqueles raros papéis que duram muito tempo na retina. E esta sensação se acentua quando se sabe dos infortúnios pessoais de um artista, transformados em algo profundo. Resumindo: depois de uma queda acentuada na carreira bem sucedida (“Múmias”), e um divórcio caro (seu pagamento anual de pensão alimentícia é de U$ 900 mil anuais), Fraser atingiu o trágico fim do túnel em 2018, após as acusações de agressão sexual que ele fez contra o então presidente da Associação da Imprensa Estrangeira em Hollywood, Philip Berk.

Mas o que mais sobre o filme, que segue o texto teatral quase ao pé da letra ?

Não é nada, senão sucinto: os eventos são explicados com uma exposição básica (“mesmo se você não fosse gordo, ainda seria o pedaço de m.... que trocou mamãe e eu pelo seu aluno”, é mais ou menos algo que a filha diz a ele); as ações desenham as reações esperadas; há uma torção ou uma reviravolta ocasional. Se, no quesito estético, Aronofsky mostra aqui sua face mais contida, no aspecto dramático o diretor de “Cisne Negro” vai em busca dos extremos.

O processo autodestrutivo do protagonista é apresentado como um festim grotesco de arritmias, afogamentos, bebedeiras desenfreadas, quedas prematuras e uma imobilidade dilacerante, embora a maior dor de Charlie esteja no coração. Apesar de pessoa afável e exibir um positivismo louvável, esse homem obeso parece tocado pelo destino, algo que Aronofsky acentua ao convidar a maioria dos personagens a tratá-lo com desprezo; mesmo aqueles que o apreciam caem na desconsideração guiados pelo ódio de si mesmo que o protagonista carrega nas costas. “I’m sorry” é seu bordão mais frequente.

Além de ruidosa exibição dramática, “A Baleia” chama a atenção pelo trabalho de Brendan Fraser que, das profundezas de uma ostentação de maquiagem protética (ao modo de Gary Oldman como Churchill), consegue compor um personagem que navega entre o desconsolo e a expressão da ternura genuína. É uma pena que o potencial de complexidade do personagem bom e afetuoso seja sobrecarregado pela ênfase em dimensão piedosa. Com um temperamento mais próximo da grandiosidade do que da observação comedida, “A Baleia” caminha à procura da luz, deixando pelo caminho um rastro de dor.

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