Ao longo dos 127 minutos de “20.000 Espécies de Abelhas” (convenhamos, é título difícil de vender, mas cada abelha e cada minuto compensam), presenciamos um verão crucial na vida da família basca protagonista. O casal formado pelos atores Patricia López Arnáiz e Martxelo Rubio está se desfazendo. Então ela pega os três filhos e sai de Bayonne para voltar à casa da mãe (Itziar Lazkano). Em Llodio, no País Basco, com a natureza em primeiro plano e a silhueta das fábricas ao fundo, vive também a tia Lourdes (Ane Gabarain), que recolhe mel e utiliza abelhas para fins curativos.

A diretora estreante Estibaliz Urresola trabalha com atores profissionais, embora a alma da história esteja no olhar de uma menina de nove anos, Sofía Otero, que nunca esteve diante de uma câmara – e a quem foi dado o Urso de Prata de melhor intérprete feminina. À realizadora não falta ambição, pois enriquece o tema central – a reafirmação da identidade feminina da menina – com múltiplas notas colaterais e simbolismos. Talvez um pouquinho demais.

Em exibição no Ouro Verde somente até esta quarta-feira (15) o filme pretende (e consegue) captar a naturalidade e a verdade das relações familiares, mantendo-se fiel a um espaço e a uma idiossincrasia. E o que é mais importante: o espectador é levado a sentir o que acontece a uma família com uma menina trans. A pequena Cocó (Sofía Otero), de oito anos, servirá de catarse para todos eles. Há muito tempo ele ostenta uma aparência andrógina, com cabelos longos. Ele não entende porque o chamam de Aitor e faz xixi em pé. Nem a distinção dos vestiários da piscina municipal, para meninos e meninas. Aitor quer ser chamado de Lucía. Todos ao seu redor sabiam que algo estava acontecendo com ela, mas não se atreviam a abordar o assunto. Até que neste verão terão que admitir que têm uma filha. E uma sobrinha. E uma neta.

“20.000 Espécies de Abelhas” defende a passagem de fronteiras, incluindo o limite que separa Bayonne de Llodio: este é um filme em que se ouvem bascos, espanhóis e franceses. Urresola busca o naturalismo nos diálogos entre mãe e filhos, sem dúvida fruto de múltiplos ensaios. A disforia de gênero é abordada com certo didatismo, mas com emoção. “Por que sou assim?”, pergunta a pequena Cocó, que é acompanhada no seu dia a dia pela vergonha do seu corpo e pelo julgamento dos olhos dos outros. O filme questiona também a fé e o batismo, ato pelo qual nos é atribuído um nome. Esse é um aspecto fundamental nas teses do filme: eles constróem para nós o olhar dos outros.

Rodado com uma equipe técnica e artística quase inteiramente feminina, “20.000 Espécies de Abelhas” defende que somos tão diversos quanto aqueles insetos cujo mel serve para fazer esculturas. Ou velas para os santos. Neste bucólico País Basco também há lugar para picadas de abelha como medicina alternativa. Estibaliz Urresola quer ir muito além do que nos contar sobre uma infância trans. A herança familiar, a atitude diferenciada face ao heteropatriarcado das mulheres de três gerações e o desgaste conjugal enriquecem este drama de cozimento lento, em que um banho de rio pode ser purificador.

Nascer de novo, defende este filme de estreia maduro, está ao nosso alcance.