RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Responsável pela operação mais letal da história do Rio de Janeiro, que deixou 28 mortos na semana passada no Jacarezinho, a "tropa de elite" da Polícia Civil acumula ações trágicas e alta taxa de mortes em suas incursões em favelas.

Foi uma operação da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) que motivou a ação no STF (Supremo Tribunal Federal) que impôs exigências para as ações em favelas durante a pandemia do novo coronavírus.

A medida foi pedida na Corte após a morte do menino João Pedro Mattos, 14, durante uma operação da tropa em São Gonçalo em maio de 2020, junto com agentes da Polícia Federal. O homicídio até hoje não foi esclarecido.

Alta taxa de letalidade, casos trágicos e sem esclarecimento são frequentes nas ações desta tropa da Polícia Civil.

De acordo com dados do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da UFF (Universidade Federal Fluminense), a média de mortos por operação da Core entre 2007 e 2021 é de 0,66, frente aos 0,74 registrados pelo Bope (Batalhão de Operações Especiais), da Polícia Militar.

No caso da Core, foram 419 ações com 277 óbitos no período. No do Bope, 987 ações com 732 óbitos. Os dois números são superiores à média geral de 0,41 por incursão considerando todas as operações policiais no período.

A Core, por sua vez, realiza prisões com mais frequência do que o Bope. Enquanto em 56% das operações da tropa de elite da Polícia Civil têm registros de presos, o percentual cai para 30,6% nas incursões do grupo da PM.

Para o coordenador do Geni/UFF, Daniel Hirata, o levantamento, feito a pedido do jornal Folha de S.Paulo, mostra que "a especialização que está se criando nesses grupos é contrário ao respeito dos direitos humanos e à preservação da vida como valor último da segurança pública".

"O que se espera dessas unidades especiais é que elas sejam mais preparadas, com excelência em tiros defensivos. Espera-se que o preparo tático no momento das operações policiais seja superior ao dos batalhões de área e com uma letalidade menor", afirmou o pesquisador.

Procurada para comentar a atuação da Core, a Polícia Civil não havia respondido até a publicação desta reportagem.

Uma das operações letais do grupo da Polícia Civil aconteceu em 2012, quando cinco pessoas foram mortas em supostos confrontos com a Core na favela do Rola, zona oeste do Rio de Janeiro. Dois anos depois, oito policiais foram denunciados sob acusação de homicídio qualificado.

Três deles eram tripulantes do helicóptero da tropa. Imagens feitas por um policial da aeronave mostraram que um traficante fugia sem disparar contra a polícia quando foi morto, o que não confirma a tese de legítima defesa apontada pelos acusados.

Eles foram absolvidos sumariamente em 2017, antes da análise do Tribunal do Júri, pelo juiz Carlos Gustavo Vianna Direito. O magistrado entendeu que, "diante da operação de grande risco em que vários disparos de arma de fogo foram efetuados, não era possível exigir conduta diversa dos acusados diante do iminente risco de morte".

Essa foi uma rara denúncia oferecida contra agentes da Core ao longo dos últimos anos.

Não foi o destino de outros três policiais envolvidos num homicídio no morro do Banco (zona oeste), em maio de 2014. Imagens mostram Alysson Fernando Silva de Lima, 23, levantando as mãos ao ser rendido pelos policiais da Core numa rua.

No momento em que se senta na calçada, disparos são ouvidos, mas a câmera que filmava a ação muda o enquadramento. Em seguida, o jovem aparece caído no asfalto.

Não houve conclusão dessa investigação.

Também segue sem esclarecimento a morte do menino Marcos Vinicius da Silva, 14, ocorrida no Complexo da Maré em 2018, numa ação com a participação da Core. O mesmo ocorre com as oito mortes ocorridas na favela do Salgueiro em 2017, em incursão que também contou com agentes do Exército.

Até 2016, os registros de mortes provocadas por agentes da tropa eram registrados e investigados na própria coordenadoria. Apenas em casos mais rumorosos a Corregedoria agia, como na operação da favela do Rola.

A transferência da apuração para a Divisão de Homicídios, porém, não diminuiu a desconfiança entre observadores da segurança pública fluminense. O fato de fazerem parte da mesma corporação mantinha dúvidas sobre a isenção dos inquéritos.

No ano passado, o STF determinou que o Ministério Público estadual instaure procedimentos próprios para realizar investigações independentes sobre mortes provocadas por policiais. A Promotoria afirma ter em curso 44 apurações próprias, além da força-tarefa criada nesta terça-feira (11) para avaliar o massacre do Jacarezinho.

A Core foi criada como um espelho do Bope na Polícia Civil. Com blindados --os chamados caveirões--, armamento pesado e helicópteros para suas ações, a tropa é alvo de críticas por fugir da atribuição investigativa da corporação.

"A Polícia Civil argumenta que ela é necessária para executar mandados de prisão, dizem que não teriam como executar mandados em áreas de risco sem essa equipe especial. Na prática, concorrem com o Bope e são uma força extremamente letal. Fazem a mesma coisa, têm a mesma cultura, o mesmo ethos, de confronto, de entrar em áreas de risco", afirma o sociólogo Ignácio Cano, da Uerj.

O ex-chefe da Polícia Civil Fernando Veloso defende a existência da tropa na corporação. Ele afirma que a Core é uma unidade de apoio essencial para as atividades de polícia judiciária.

"Uma das possíveis causas da alta letalidade pode ser porque se submetem ao enfrentamento das situações com maior possibilidade de resultado letal. Eles não intervêm em situações em que o grau de risco seja pequeno. Se o risco for pequeno, não é a função deles", diz Veloso.

"Agora, não podemos negar que eles são preparados para o uso máximo da força que a polícia pode empregar. Esse preparo se faz necessário pelo uso máximo do enfrentamento. O enfrentamento deles dificilmente vai ser com revólver. O dia a dia das unidades de elite é enfrentar bandidos fortemente armados", afirma o delegado.

Vizinho à sede da Core desde 2013, que fica no complexo da Cidade da Polícia, o Jacarezinho já foi palco de outras operações da tropa, tendo enfrentado situações semelhantes à da semana passada.

Em agosto de 2017, o atirador de elite da Core Bruno Guimarães Buhles foi morto durante uma operação na favela. O homicídio foi seguido de operações diárias na região ao longo de uma semana. Duas pessoas morreram --entre elas uma mulher de 50 anos-- e três ficaram feridas nos confrontos.

Em janeiro do ano seguinte, o delegado Fábio Monteiro foi encontrado morto em uma favela próxima ao Jacarezinho. A comunidade voltou a ser alvo de operações e, um ano depois, o suspeito do homicídio foi morto em um suposto confronto com a agentes da Core.

As duas mortes são mencionadas no relatório de inteligência da Polícia Civil sobre a operação da semana passada para contextualizar a quadrilha que atua no Jacarezinho.