SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Durante o segundo jogo da primeira rodada dos playoffs da NBA entre Boston Celtics e Brooklyn Nets, no último dia 20, uma imagem chamou bastante atenção.

Após um pedido de tempo no fim do primeiro quarto, Kyrie Irving, armador dos Nets, deixou a quadra. Um funcionário da equipe apontava para o relógio enquanto Irving partia em direção ao vestiário, como se avisasse de que estava na hora de fazer algo.

Minutos depois, o armador voltou do interior da arena com uma garrafa d'água e comida. Havia anoitecido em Boston, onde sua equipe enfrentava os Celtics, ou seja, o atleta, que jejuava por conta do Ramadã, podia voltar a ingerir alimentos e líquidos.

O Ramadã varia a cada ano no calendário ocidental. Em 2022, começou no dia 1º de abril e se encerrará neste domingo, 1º de maio. Ao longo de um mês, os muçulmanos não podem comer ou beber do nascer até o pôr do sol.

A imposição dessa dieta é um dos pilares do islã. Uma espécie de sacrifício durante os 30 dias nos quais os muçulmanos acreditam que o profeta Maomé recebeu a revelação de seu livro sagrado, o Alcorão.

Discute-se muito o impacto que a não ingestão de comidas e bebidas ao longo de boa parte do dia pode ter em atletas de elite.

"[O Ramadã] É um período no qual o risco de lesões aumenta, especialmente a nível lombar, das articulações e dos músculos", afirmou o especialista em medicina esportiva Hakim Chalabi, que trabalhou com a seleção da Argélia na Copa do Mundo de 2014, em entrevista à AFP.

"O nível de nutrição deve mudar. É necessário modificar também a qualidade dos alimentos para adaptá-los ao exercício. Os jogadores devem hidratar-se melhor. Além disso, aconselhamos que o descanso seja mais prolongado à tarde, com o objetivo de recuperar parte do tempo de sono."

Na própria NBA, o pivô Hakeem Olajuwon, do Houston Rockets, conviveu na década de 1990 com seguidas perguntas sobre os efeitos do jejum em seu desempenho.

Na temporada 1994/1995, a primeira em que Olajuwon passou a jejuar, o nigeriano-americano teve média de 29 pontos nos 15 jogos que disputou durante o Ramad㠖sua média na temporada regular foi de 27,8. Ele ainda foi eleito o melhor jogador de fevereiro, mesmo com o período de jejum tendo iniciado no dia 1º daquele mês.

Em 1997, diante do Chicago Bulls de Michael Jordan, o pivô registrou uma de suas grandes atuações ao jogar 39 minutos e anotar 32 pontos, com quatro assistências, 16 rebotes, cinco bloqueios e quatro roubos de bola. Os Rockets estavam desfalcados de Charles Barkley, mas Olajuwon, em jejum, liderou o time à vitória por 102 a 86.

O assunto tende repercutir mais nas apresentações ruins do que nas boas.

No jogo do dia 20, em que apareceu com uma banana na quadra logo depois do pôr do sol, Kyrie Irving não teve atuação consistente na derrota do Brooklyn Nets para o Boston Celtics por 114 a 107, somando apenas 10 pontos e uma assistência. Contudo, no primeiro confronto da série, ele havia marcado 39 pontos.

Sua média nos quatro duelos da primeira rodada dos playoffs contra os Celtics foi de 21,2 pontos e 5,2 assistências. As quatro derrotas em sequência, que causaram a eliminação do time de Brooklyn, parecem dizer mais sobre o mau funcionamento da equipe do que sobre o desempenho do atleta sob jejum.

"É uma jornada. E não estou sozinho nessa, tenho irmãos e irmãs ao redor do mundo que estão jejuando comigo. Nossas orações e meditações são sagradas. Quando eu venho aqui [para a quadra], Deus está dentro de mim. Está dentro de você, dentro de todos nós. Estou caminhando com fé e é isso que importa", afirmou o armador, após marcar 34 pontos no jogo contra o Cleveland Cavaliers que garantiu aos Nets um lugar nos playoffs.

Essa fé coletiva mencionada por Kyrie Irving, explica Francirosy Campos Barbosa, antropóloga e docente da USP de Ribeirão Preto, é parte fundamental do Ramadã. E é daí que as comunidades muçulmanas, incluindo os atletas amadores ou de alto nível, tiram força para dirimir os possíveis impactos do jejum.

"As pessoas esquecem o fato da fé. Ela faz aquilo com tanta devoção que não sente o peso do jejum. É uma força do coletivo. Muçulmanos, principalmente os que nascem na religião, estão muito habituados a essa dieta. Se é um atleta de elite, ele tem uma nutróloga e um preparador físico que sabe exatamente o que passar para ele", diz a especialista em islã, que pesquisa sobre a religião há 24 anos.

Irving não foi o único atleta de elite a se hidratar durante uma partida neste mês. Na Bundesliga, o francês Moussa Niakhaté, do Mainz 05, aproveitou uma pausa durante o confronto com o Augsburg para tomar água e ingerir suplementos líquidos, guardados ao lado da meta pelo goleiro de sua equipe.

O inusitado da cena foi o fato de que a pausa aconteceu graças ao árbitro Matthias Jollenbeck, que paralisou o jogo após o pôr do sol especialmente para que Niakhaté pudesse fazer seu desjejum.

A medida havia sido liberada recentemente pela Federação Alemã. Diretor geral de comunicações do Comitê de Arbitragem da Alemanha, Michael Fröhlich afirmou que "apoiamos nossos árbitros, permitindo tais pausas para hidratação durante o Ramadã, a pedido dos jogadores".

Apesar da importância do jejum, há casos, porém, em que o islã admite exceções.

A tradição islâmica aceita que os doentes estão isentos de jejuar, assim como quem viaja para longe de casa. É o caso, por exemplo, de quem vai a outro país para participar de um evento esportivo importante, como a Copa do Mundo.

"De acordo com o Alcorão sagrado, Deus quer a facilidade, não a dificuldade. Se você tem uma doença crônica e não pode ficar sem a insulina, você não faz o jejum, e paga em comida para um necessitado. Uma mulher grávida que não esteja se sentindo bem pode comer, beber. Tudo tem uma forma de você pagar. Eu, por exemplo, viajo 300 km às vezes, mas não quebro o jejum porque sinto que não preciso. Se precisasse da facilidade, poderia quebrar", completa Francirosy Campos Barbos.

Astro do Liverpool, o egípcio Mohamed Salah quebrou o jejum de Ramadã pouco antes do início do Mundial de 2018, quando viajou à Ucrânia para a final da Champions League entre Real Madrid e Liverpool. Os mais radicais creditaram sua lesão naquele jogo, que comprometeu sua aparição nas primeiras partidas da Copa, à interrupção do jejum.

Já a Arábia Saudita, um dos países islâmicos mais restritos, optou por adiar a dieta do Ramadã para depois da disputa da Copa.