SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A tentativa de fugir da guerra entre Rússia e Ucrânia tem produzido relatos como o do estudante nigeriano Alexander Somto Orah, que diz haver racismo contra os negros que buscam deixar o território ucraniano.

"Nas estações de trem de Kiev, crianças primeiro, mulheres em segundo lugar, homens brancos em terceiro, depois o restante das vagas é ocupado por africanos", publicou Alexander em sua conta no Twitter.

Os governos da Nigéria e da Jamaica afirmaram ter recebido depoimentos semelhantes de imigrantes que enfrentam dificuldades para conseguir o acesso a trens e cruzar as fronteiras do país. Segundo as vítimas, elas acabam barradas por forças de segurança ou até mesmo por civis ucranianos.

O futebol da Ucrânia, que assistiu nos últimos anos a um crescimento na presença de integrantes da extrema-direita em torcidas organizadas, ajuda a explicar o que tem ocorrido com os cidadãos negros durante o conflito. Não é um fenômeno novo, mas é algo que se intensificou consideravelmente.

Franklin Foer, em seu livro "Como o Futebol Explica o Mundo" (Zahar, 2004), já relatava um cenário hostil aos imigrantes africanos a partir da história de Edward Anyamkyegh, um nigeriano que chegou ao país em 2001 para jogar pelo Karpaty Lviv. Um ano após sua chegada, o clube contratou outro nigeriano, Samson Godwin.

Fazia uma década que a União Soviética havia se desintegrado. A Ucrânia, na esteira da globalização acelerada, começava a abrir o seu mercado para os estrangeiros, incluindo os africanos, cujos principais nomes figuravam nas principais ligas europeias.

Existia dentro do Karpaty, porém, uma resistência à dupla de nigerianos. Yuri Benyo, ucraniano e capitão da equipe, disse em entrevista a Foer que considerava os dois arrogantes e indiferentes. "Pelo preço de Edward, poderíamos ter criado dez jogadores ucranianos."

Cosmopolita no passado, Lviv, onde nasceu Yuri, orgulhava-se de suas universidades e de seu pluralismo. Era forte a presença de russos, alemães e poloneses —muitos deles judeus— nos cafés e casas de ópera da cidade. Entretanto, com a proximidade da Segunda Guerra e o eco dos discursos nacionalistas ressoando por toda a Europa, Lviv passou por uma transformação.

"Muitos ucranianos achavam estranho que seu povo tivesse ganhado tão pouco no período áureo da cidade. Começaram a nutrir profundos ressentimentos em relação à presença de tantos intrusos. Durante a Segunda Guerra, aproveitaram a oportunidade para reverter esse quadro. Muitos ucranianos da cidade atuaram com os alemães na eliminação dos judeus -que um dia representaram 30% da população local", escreveu o autor norte-americano.

Foer relata em sua obra uma tentativa de diálogo com dois jornalistas esportivos da cidade. Seu objetivo era tentar entender o porquê da resistência aos atletas africanos do Karpaty.

Enquanto conversava com eles na esquina do hotel onde estava hospedado, Edward Anyamkyegh passou de táxi e, após baixar o vidro do carro, estendeu a mão e cumprimentou Foer. Os dois ucranianos acenaram para o jogador. Quando o carro saiu do campo de visão, um deles riu.

"Macaco", disse o jornalista em inglês, acompanhado pelo colega, que replicou com "bananas".

Ainda assim, Foer defendeu que não havia racismo em Lviv ou no futebol ucraniano.

"Numa atmosfera de nacionalismo e ressentimento, contudo, não existe racismo de fato. Excetuando-se esporádicas e grosseiras explosões de ódio, a situação não está nem perto de ser como na Europa Ocidental. Nos jogos, os torcedores não imitam macacos quando Edward entra em campo ou toca na bola."

Se para o autor de "Como o Futebol Explica o Mundo" faltavam manifestações racistas em estádios para que fosse configurado o racismo de fato, já não faltam mais.

Em outubro de 2015, durante um confronto entre Dínamo de Kiev e Chelsea, pela Champions League, na capital ucraniana, um grupo de torcedores do Dínamo irrompeu no setor vizinho e agrediu quatro pessoas negras, que também torciam pelo clube da casa.

A Uefa puniu o clube em 100 mil euros. Determinou ainda a realização de dois jogos de portões fechados e a obrigatoriedade de estampar no uniforme, até o fim da temporada, a mensagem "Say no to racism".

Novembro de 2019. Em um clássico entre Dínamo de Kiev e Shakhtar Donetsk, os brasileiros Taison e Dentinho foram vítimas de racismo em um jogo da liga nacional. Irritado, Taison chutou a bola para a arquibancada e mostrou o dedo do meio para os torcedores. Por isso, acabou expulso.

Casos como esses têm sido comuns no futebol da Ucrânia nos últimos anos. Em 2017, integrantes da torcida do Dínamo foram a um jogo da equipe com roupas que aludiam à Ku Klux Klan e máscaras com suásticas.

Reportagem publicada pela Folha em 2019 ouviu de Pavel Klymenko, membro da Fare Network, ONG europeia que trabalha no combate ao racismo no futebol do continente, que o aumento de manifestações racistas em jogos do Dínamo estava relacionado ao crescimento do movimento de extrema-direita no país, especialmente após os conflitos com a Rússia em 2014 pelo controle do território da Crimeia, anexado pelos russos.

Em 2016, foi fundado na Ucrânia o National Corps, partido político que emergiu de um grupo paramilitar, o Azov, com atuação no leste ucraniano. Líderes do partido, segundo Klymenko, são também lideranças dos grupos neonazistas de torcedores do Dínamo.

"Não podemos fingir que o crescimento da extrema-direita não tem tido reflexo nos estádios. Todos os que se somam a esses grupos [de torcedores] se somam também aos ideais de extrema-direita. E as coisas podem piorar", advertiu o integrante da Fare, dois anos antes da tentativa desesperada de imigrantes negros de deixarem o país para fugir da guerra.