DOHA QATAR (FOLHAPRESS) - Após ter brincando de altinha com o presidente Jair Bolsonaro e sua comitiva no gramado do estádio Lusail, palco da final da Copa do Qatar, o presidente da Fifa, Gianni Infantino reuniu um grupo de trabalhadores da grandiosa obra para uma foto. Posaram todos sorridentes e fazendo sinal de positivo.

O gesto, em frente à imprensa, foi uma tentativa de virar a página de um dos episódios mais comprometedores dos últimos anos para a imagem da entidade máxima do futebol.

Desde que as obras ligadas ao Mundial de 2022 começaram, há cerca de dez anos, denúncias de maus-tratos e trabalho escravo, que teriam provocado até mortes, se acumularam em reportagens e relatórios de entidades de direitos humanos.

A jornalistas logo após o evento, o dirigente pediu que o esforço para melhorar a situação seja valorizado.

"Temos que reconhecer o trabalho que foi feito para proteger e melhorar os direitos dos trabalhadores nos últimos anos. O Qatar hoje é realmente um exemplo", disse Infantino, para quem a própria vitrine do evento contribuiu para os avanços.

"Esse progresso não teria sido possível sem o holofote da Copa do Mundo. Vamos olhar para os aspectos positivos", disse.

Ele reconheceu, no entanto, que a situação ainda não é a ideal. "Sempre pode ser feito mais."

A exatamente um ano do início da Copa, o Qatar é um grande canteiro de obras, com incontáveis trabalhadores pintando a paisagem com seus coletes fluorescentes amarelos e laranjas.

Embora o ritmo dos trabalhos seja considerado satisfatório e não haja a perspectiva de atrasos, ainda há muito a ser concluído.

Lusail, onde fica o estádio visitado por Bolsonaro, é uma nova cidade que está sendo totalmente construída a partir do nada e ainda tem um aspecto distópico, com prédios modernos surgindo em meio a uma paisagem desértica.

Os oito estádios que sediarão o Mundial estão praticamente concluídos. Alguns precisam apenas de retoques finais ou obras no entorno.

No centro de Doha, o trânsito pesado é atravancado pela construção de corredores de tráfego, e uma extensa obra refaz a avenida à beira mar, que dará lugar à maior "fan fest" da história das Copas, com quase 10 km de extensão.

Nesses canteiros, fala-se muito pouco árabe, o idioma oficial do Qatar. O inglês com sotaque africano, ou línguas de países do sul da Ásia, é bem mais comum.

Isso porque a quase totalidade dos responsáveis pelo trabalho pesado é formada por pessoas que chegam ao país para contratos temporários, um cenário comum no emirado do Golfo Pérsico há décadas.

Dos 2,5 milhões de habitantes do Qatar, apenas 10% são cidadãos do país. O restante é formado por legiões de trabalhadores migrantes, que até 2016 eram contratados seguindo um modelo chamado de kafala.

O sistema vinculava os trabalhadores aos empregadores responsáveis por trazê-los ao país, num regime considerado de semiescravidão.

Após intensa pressão internacional e da Fifa, reformas começaram a ser feitas nos últimos cinco anos. A principal foi o fim da exigência de que o patrão autorizasse o trabalhador a deixar o país antes do fim do contrato. Agora, é proibido que o empregador retenha o passaporte do funcionário.

Também é mais fácil haver mudanças de emprego, antes uma impossibilidade. Novas normas buscam também melhorar as condições insalubres de trabalho, especialmente no verão, quando a temperatura pode beirar os 50ºC.

Trabalhadores com quem a Folha de S.Paulo conversou reconhecem avanços, mas discordam da avaliação de Infantino de que o Qatar seria um "exemplo".

O ugandense Frank Agonza, 30, chegou a Doha para um contrato de quatro meses, trazido por uma empresa que faz o trabalho de recrutamento de trabalhadores em seu país. Na última quinta-feira (18), ele e um colega queniano faziam serviço de limpeza no estádio Ras Abu Aboud, uma das novas arenas da Copa, que está mais de 90% concluída.

"Aqui pelo menos há trabalho", diz ele, que vivia de fazer serviços esporádicos para mineradoras em Uganda. "Eu não diria que a vida aqui é boa, mas é melhor do que no meu país", diz.

Agonza trabalha das 7h às 16h na construção do estádio e recebe salário-base de 1.300 riais, ou cerca de US$ 370 (R$ 2.000 pelo câmbio atual). Quase toda a renda é enviada para casa, onde ele deixou uma filha de seis anos.

As condições de vida são espartanas. Ele dorme num quarto com outras três pessoas. "Temos apenas uma cortina separando nossas camas", diz. Mesmo assim, quer estender o vínculo após seu contrato se encerrar. Sonha ficar ao menos dois anos no Qatar, trabalhando em outras obras após o Mundial.

A alguns quilômetros de distância, o ritmo de trabalho é intenso na Corniche, a extensa orla da cidade. Aos poucos, o cenário vai ganhando a cara do Mundial. Numa praça, 32 bandeiras com a marca da Copa estão hasteadas e vão dando lugar às de países conforme as seleções se classificam -a mais recente foi a da Argentina, na quarta (17).

Centenas de trabalhadores colocam ladrilhos no chão, pavimentam ruas e aplicam grama artificial no local, que deverá ser um dos mais frequentados pelos torcedores durante o evento. O trabalho prossegue mesmo nos 30ºC do outono qatari, temperatura considerada amena no país.

Mas nos meses do verão, a nova legislação determina que o serviço seja interrompido no meio do dia.

"Agora está fácil", diz Jamal, que veio da Jordânia e supervisiona a operação de guindastes. "Nos meses de julho, agosto e setembro, nós paramos das 12h às 15h".

No canteiro de obras do Corniche, a maioria dos trabalhadores vem de países como Índia, Paquistão, Sri Lanka e Nepal. Praticamente todos têm máscaras em razão da pandemia, embora muitos não as utilizem. "Em setembro [de 2022] estará tudo pronto", disse um operário da região de Tamil, no sul da Índia.

Para tentar melhorar a imagem das obras, o Ministério do Trabalho do Qatar criou uma seção em sua página na internet dedicada a propagandear as reformas na área trabalhista.

Em julho, o ministério baixou um decreto com normas que em outros países seriam consideradas de praxe, mas que para a realidade local são saudadas como marcos.

Uma delas diz que o "o empregador é obrigado a emitir um contrato com o trabalhador antes da sua chegada ao país, nas mesmas condições que foram aceitas pelo funcionário, além de fornecer acomodação e refeições".

Outro item afirma que os direitos do empregador perdem a validade caso haja agressão ao funcionário ou quebra de condições previamente estabelecidas.

As mudanças anunciadas foram elogiadas pela Organização Internacional do Trabalho, que as saudou "calorosamente".

Mas não convenceram entidades que denunciam os maus tratos a trabalhadores. Uma das mais influentes, a Human Rights Watch, chamou as reformas de "decepcionantes".

"Mesmo que o governo do Qatar introduzisse inteiramente as reformas prometidas, não significaria o fim do sistema de exploração", disse Hiba Zayadin, pesquisadora da ONG, à agência Associated Press.

Segundo ela, os trabalhadores seguem amarrados a seus empregadores em termos legais e podem ser presos e deportados se deixarem seus empregos sem permissão.