SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A Polícia Civil de Porto Alegre solicitará ao IGP (Instituto Geral de Perícias) a leitura labial do momento em que o volante Edenilson, do Internacional, acusa o lateral Rafael Ramos, do Corinthians, de injúria racial, durante partida entre as equipes realizada no sábado (14), no estádio Beira-Rio, pelo Campeonato Brasileiro.

Segundo a delegada Ana Luiza Caruso, responsável pela 2ª Delegacia de Polícia Civil da capital gaúcha, um inquérito para investigar o caso será aberto nesta segunda-feira (16), quando será feito o pedido ao IGP.

À reportagem, a delegada disse que deverá pedir o indiciamento do jogador do time paulista. "Em princípio, pelo contexto probatório que a gente formou ontem (14), quando nós fizemos as oitivas, tanto do autor do fato quanto do Edenilson, chegamos à conclusão que, em princípio, encaminharemos para o indiciamento."

Ainda de acordo com a responsável pelo caso, o atleta do clube gaúcho relatou ter tido uma conversa com o jogador do Corinthians, em que ele esperava por um pedido de desculpas. "Como não veio [o pedido], ele acabou resolvendo dar início à ação penal", afirmou a delegada.

Rafael Ramos foi preso em flagrante pelo delegado Carlo Vitarelli, cerca de duas horas após o jogo, ainda dentro do estádio Beira-Rio. Segundo a delegada Ana Luiza Caruso, o Corinthians pagou a fiança de R$ 10 mil, e o atleta foi liberado.

Em seu depoimento, Ramos negou que tenha chamado Edenilson de "macaco". Segundo ele, o que disse na hora foi "mano, caralho".

Após o ocorrido, Edenilson se manifestou pelo Instagram. Ele começou dizendo que "sabe o que ouviu" e que procurou o atleta corintiano "para que ele assumisse e pedisse desculpas, afinal todos nós erramos e temos o direito de admitir".

No entanto, escreveu o jogador do Internacional, "o mesmo continuou a dizer que eu havia entendido errado". "Não entendi errado, o procurei pelo respeito que tenho por alguns integrantes do Corinthians, e para que ele pudesse ter uma chance de se redimir", completou.

Sobre a conversa com o jogador do time gaúcho, Rafael Ramos afirmou que está "está de cabeça e consciência limpa e que "foi tudo um mal-entendido".

Em nota, o Internacional afirmou que "é inadmissível que ainda ocorram fatos desse tipo em 2022, não há espaço para o racismo em nossa sociedade."

O Corinthians, também em comunicado, disse não compactua com racismo, e que "o pagamento de fiança não implica admissão de culpa, permitindo ao atleta que se defenda em liberdade no inquérito."

Segundo o presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), Irapuã Santana, em casos como este, o conjunto de provas do inquérito costuma incluir os depoimentos dos envolvidos e das testemunhas, bem como a perícia de eventuais áudios e imagens.

"Qualquer elemento que demonstre o fato, desde que seja obtido de maneira lícita e não ofenda os direitos do acusado, pode ser considerado uma prova dentro de um processo criminal", disse. "A partir daí, acusação e defesa podem apresentar eventuais elementos que venham a demonstrar a culpa ou a ausência de culpa."

O ato de injúria racial teria ocorrido aos 30 minutos do segundo tempo, quando os dois jogadores se desentenderam após uma disputa de jogo. Quando a bola saiu para a lateral, o atleta colorado se dirigiu ao árbitro Braulio da Silva Machado para relatar que teria sido chamado de "macaco".

O árbitro também foi chamado para dar seu depoimento, que contribuiu para a decisão da Polícia Civil pela prisão em flagrante.

No Brasil, um dos casos de maior repercussão que também envolveu a prisão de um jogador ocorreu em 2005, quando o argentino Leandro Desábato recebeu voz de prisão no estádio do Morumbi logo depois do jogo entre São Paulo e Quilmes (ARG), pela Libertadores.

Na ocasião, ele foi acusado de praticar ofensa racial contra o atacante Grafite, que se recorda de ter sido chamado de "negro de merda" pelo adversário, conforme disse em recente entrevista à Folha. Desábato também pagou fiança e foi liberado para voltar a seu país.

Rafael Ramos responderá ao processo em liberdade. Inclusive, ele viajou junto com o Corinthians para a Argentina, onde o time encara o Boca Juniors na terça-feira (17), pela Libertadores.

Segundo o Observatório da Discriminação Racial, entre 2014 e 2021, foram registrados 330 episódios envolvendo suspeita de racismo e injúria racial no futebol brasileiro, sendo os números do último ano (53) ainda preliminares.

Até 2020, nenhum dos casos monitorados pela entidade terminou em punição na esfera criminal. Do total, apenas 49 chegaram a ser julgados pela Justiça Desportiva (TJD/STJD), e 30 deles geraram alguma sanção. A maioria das penas foi em forma de multa (entre R$ 400 e R$ 50 mil) e/ou suspensão. Apenas três episódios foram punidos com perda de mando de campo, e dois, com perda de pontos.

Além destes, quatro casos foram julgados e punidos no âmbito da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol), com multas entre US$ 10 mil e US$ 20 mil.

De acordo com o levantamento, 70% dos episódios registrados aconteceram nos estádios, 23% na internet e 6% em outros espaços.

Os estados brasileiros com mais denúncias catalogadas --e também os únicos com casos identificados em todos os anos desde 2014-- são Rio Grande do Sul (29,4%), São Paulo (14,7%) e Minas Gerais (7,4%).

Para Marcelo de Carvalho, diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, esses números estão ligados à impunidade.

"Por mais que a gente tenha alguns casos punidos, está faltando punição mais efetiva. Em alguns casos, mesmo com todos os elementos possíveis para punição dos envolvidos, como em casos envolvendo os clubes, o clube acaba sendo absolvido porque um clube de futebol não pode ser punido pelo ato de um torcedor, por exemplo", afirmou Carvalho.

Segundo ele, quando ocorre uma punição, normalmente é uma multa de valor baixo e esse valor não é destinado ao combate ao racismo.

"Nesse momento, que a gente está observando um crescente número de casos, a gente precisa trabalhar com as punições. E trabalhar, principalmente, com a responsabilização dos clubes. Se o clube foi punido por racismo, essa multa precisa ser destinada para uma campanha de combate ao racismo", acrescentou.