Que lembranças atormentavam a lenda? Será que Três Corações pulsava em suas ideias? Que trem apita na estação de Bauru, quais os vagões que trepidavam sobre suas linhas de memórias dormentes? A Ponta da Praia, o Zé Menino, o Gonzaga, em que parte do grande jardim caminhava sua imaginação? O porto sem fim abriga algum contêiner lacrado com sentimentos inconfessáveis?

Imagem ilustrativa da imagem O Pelé infinito das nossas fantasias
| Foto: AFP / FRANCK FIFE

Sem saúde, sem mobilidade, sem futuro, conformado com os limites de uma pequena área em forma de leito hospitalar.

Edson por certo mergulhou no oceano do passado que só um Rei pode explorar.

A vista do Central Park, milhares de pousos e decolagens, os filhos eufóricos nas ruas da Mãe África, a geral do Maracanã, o alambrado cheio de dedos do velho Urbano Caldeira, o apito firme de Armando Marques, a textura da Jules Rimet e das cinturas macias de todas as beldades.

Seria necessário um supercomputador para armazenar uma super vida.

Mas Pelé era, digamos, humano e, no seu combalido cérebro, talvez murmurassem vultos de camisas brancas e amarelas, gemessem bolas estufando redes ou se precipitando em caçapas, como uma grande salada afetiva temperada pela imprecisão.

Edson, moribundo, se apegava à criatura inexpugnável que concebeu para resistir à fúria da sua enfermidade.

Mas os caminhos do criador e da criatura se apartariam, de modo inexorável.

O sorriso mais contagiante do esporte, o rosto brasileiro mais conhecido da história, subiu energicamente ao panteão dos heróis com a mesma determinação que um dia o fez interceptar o voo da bola impossível, na tarde de verão mexicano em 1970, aquela que colocou o País em outro patamar.

Foi como se o ponto final de Edson libertasse Pelé para exercer sua grandeza no plano atemporal e infinito.

Foi assim que ele fez seu último gol, aliviando as dores de um octogenário acamado, descendente de escravizados, como tantos outros milhões, nascido numa cidade desconhecida de um país então obscuro.

Mas há tanto o que pensar de hoje em diante, neste primeiro dia no qual o Brasil existe sem seu quase sinônimo.

Um lamento passa pela cabeça: é melancólico que aquela Jules Rimet e Pelé não possam ser mais tocados e fiquem fora do alcance dos nossos olhos para sempre...

Mas é tão bonito imaginar que nossa fantasia ganha novas fronteiras.

Permite agora que enxerguemos mãos suadas e metal se roçando de novo, em um triunfo negro e dourado.

Aí, meus caros, é nosso coração que se derrete.

Obrigado, Pelé!

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