Os casos de injúria racial cometidos contra o meia Celsinho na Série B reforçam que o racismo no futebol precisa ser tratado com extrema seriedade. O episódio mais recente, na partida contra o Brusque, semana passada, ganhou ainda mais repercussão nacional depois que o clube catarinense emitiu uma nota oficial em que relativizou as ofensas do acusado - presidente do Conselho Deliberativo - e insinuava que Celsinho estava posando de vítima, já que era a terceira vez que ele denunciava ter sido vítima de racismo. Diante das reações negativas, o Brusque divulgou uma segunda nota em que pedia desculpas ao jogador e ao Londrina e prometia tomar providências.

Jogadores do LEC entraram em campo contra o Coritiba, dia 1º, condenando atos de racismo
Jogadores do LEC entraram em campo contra o Coritiba, dia 1º, condenando atos de racismo | Foto: Isaac Fontana/Framephoto/Folhapress

Levantamento do Observatório da Discriminação Racial no Futebol constatou que de 31 denúncias de racismo no futebol em 2020 apenas quatro chegaram ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e desse total somente três resultaram em punições. O quarto caso, que não teve punição, foi do jogador Gérson, que no Brasileiro do ano passado, pelo Flamengo, denunciou um jogador do Bahia, e foi arquivado por falta de provas. “Isso em um ano que o futebol brasileiro está sem torcida nos estádios, ou seja, o que torna os casos mais graves, porque eles estão sendo cometidos por pessoas autorizadas pelos clubes para estarem no estádio”, aponta Marcelo Medeiros Carvalho, fundador do Observatório. “Chama a atenção sobre o caso do Celsinho a nota do Brusque na tentativa de desqualificar o autor das denúncias.” Segundo Carvalho, o primeiro comunicado divulgado pelo clube catarinense sobre o episódio teve o objetivo de tentar confundir. “A segunda é aquela nota protocolar que a gente geralmente acompanha. É uma nota que diz que vai averiguar quem foi o autor da ofensa e, se o autor da ofensa for identificado, o clube irá punir."

O professor e advogado Walquer Figueiredo, especialista na área desportiva como auditor do Tribunal de Justiça Desportiva do Rio de Janeiro (TJD-RJ), afirma que o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) proíbe o racismo de forma muito severa. “Tem o artigo 243, que pune não só o atleta, caso ele seja o ofensor, como pode punir a própria torcida, como aconteceu tempos atrás em um caso com o goleiro Aranha, quando ele defendia o Santos num jogo contra o Grêmio.” Naquele episódio, a torcida do Grêmio insultou o goleiro chamando-o de "macaco", e o clube gaúcho foi excluído da Copa do Brasil. “É uma prática lamentável, que atinge não só o mundo desportivo, mas até fora. Essa repercussão do caso envolvendo o jogador Celsinho, do Londrina, com certeza terá consequência extracampo e extra Justiça Desportiva. Isso com certeza vai chegar na Justiça comum, com a atuação do próprio tribunal competente e da própria Polícia Civil”, destaca. O Londrina já informou que entraria com uma notícia de infração contra o Brusque no STJD, em que pediria a exclusão do time da Série B, além de ações nas esferas cível e criminal contra o clube e o acusado de disparar as ofensas.

 O professor e advogado Walquer Figueiredo afirma que o caso de Celsinho certamente vai chegar na Justiça comum
O professor e advogado Walquer Figueiredo afirma que o caso de Celsinho certamente vai chegar na Justiça comum | Foto: Divulgação/Anderson Oliveira

“Nesse artigo 243, do CBJD, há essa possibilidade do clube inclusive perder os pontos. De uma forma geral, o clube pode sofrer uma punição pecuniária, ou seja, pagando uma indenização para a confederação, porque é uma das punições previstas no CBJD", explica Figueiredo. Ele ressalta que se for comprovado que a ofensa partiu de um dirigente do Brusque, além do clube responder pecuniariamente, o agressor, como pessoa física, também pode ser responsabilizado. “Pelo fato de não ter torcida é mais fácil essa identificação. Isso numa esfera da Justiça Desportiva, mas nada impede de ser potencializado pela justiça comum”, pontua.

AÇÕES

Figueiredo acrescenta que uma investigação da Polícia Civil e posterior denúncia ao Ministério Público do Estado possibilitariam a proposição de uma ação penal contra o dirigente na esfera criminal. “Nada impede que o próprio jogador também busque essa possível indenização, porque isso já está sendo um fato reiterado.”

Sobre a primeira nota que o Brusque emitiu, o jurista diz que há vários livros da ciência jurídica que apontam que imputar ao outro a responsabilização de um ato cometido por você é uma técnica de defesa. “É uma inversão de valores atacar aquele que está o acusando, o que sociólogos, filósofos, antropólogos e os próprios juristas usaram nos tempos passados, mas que no meu sentir não há nenhum cabimento para isso. Lógico que a gente tá falando aqui em tese, porque não tenho acesso aos autos do processo.”

Segundo ele, a exclusão do Brusque do campeonato depende de vários fatores. “Nesse caso não seria uma punição simples de acontecer. A possibilidade ocorre só naquelas penas extremamente severas. Não sei se chegaria a esse ponto. Precisaria analisar várias questões para chegar a isso”, afirma.

TRÊS PUNIÇÕES

Celsinho no momento em que identifica o dirigente do Brusque que, segundo o jogador, o xingou de “macaco” e falou para que cortasse “essa cachopa de abelha”, em referência ao cabelo do jogador
Celsinho no momento em que identifica o dirigente do Brusque que, segundo o jogador, o xingou de “macaco” e falou para que cortasse “essa cachopa de abelha”, em referência ao cabelo do jogador | Foto: Beno Kuster Nunes/Agif/Folhapress

Marcelo Carvalho, do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, ressalta que na maioria dos casos que o Observatório acompanhou fica a palavra da vítima contra a do agressor. “Pelo nosso histórico de acompanhamento de casos, quando fica apenas a palavra do jogador, se não tiver uma outra prova junto, ela quase não tem força”, destaca. “Mas o que eu acho que mais pode pesar neste caso do Brusque é a pressão popular, a opinião pública. Nesse caso ela está muito forte. Isso vai fazer com que o tribunal decida pela punição do Brusque mais forte, estimulada pela pela infeliz nota que o Brusque publicou”, aponta.

O especialista ressalta que a exclusão do Brusque da competição dependeria da participação de uma coletividade no ato racista. “No nosso entender, é um problema que a gente precisa corrigir, porque o artigo 243 diz que a punição do clube depende do número de torcedores que cometeram o ato de racismo. No dia do julgamento isso depende da interpretação de quem for julgar. Naquele caso do Grêmio foram identificados 4 ou 5 torcedores em meio a 50 mil cometendo aquele ato de racismo. Mas a minha pergunta é: qual o número considerável de torcedores dentro do estádio de futebol para essa punição? Nesse momento em que nós não temos torcida nos estádios há no máximo 80 pessoas autorizadas para estar lá e uma pessoa praticando esse ato é uma parcela considerável.”

Segundo Carvalho, no caso envolvendo o jogador Celsinho, possivelmente o processo demore cinco anos. “Isso se não for feito o acordo entre as partes, porque em caso de injúria racial o agressor vai fazer um trabalho comunitário ou pagar a pena em cestas básicas. Eu acho que a gente precisa primeiro fazer com que as leis que existam sejam de fato executadas.”, cobra.

Ele lembra que não é preciso esperar a Justiça para punir o agressor. “Eu tenho visto na Inglaterra e no Japão que antes mesmo da Justiça punir, assim que o clube identifica o torcedor que comete a ofensa já comunica o desligamento da pessoa do quadro social e a determinação dele não frequentar mais o estádio. No Brasil, os clubes geralmente deixam essa ação para a Justiça.” Marcelo Carvalho informa que por aqui somente dois clubes colocaram isso no estatuto, o Bahia e o Internacional, de excluir associados que cometerem atos de racismo.

PROVIDÊNCIAS DO BRUSQUE

O Brusque Futebol Clube anunciou por meio de nota o afastamento do envolvido por prazo indeterminado das atividades do clube até a integral e devida apuração dos fatos; a instalação de câmeras de monitoramento com captação de áudio na arquibancada coberta do Estádio Augusto Bauer; e que segue apurando todos os fatos por meio de seu Departamento Jurídico para que sejam tomadas todas as medidas cabíveis.