SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) - Mesmo sem contar mais com o jogador, todo mês o São Paulo deposita cerca de R$ 450 mil na conta de Daniel Alves, jogador que defendeu o Barcelona no semestre passado e agora negocia com o Athletico-PR. Isso acontece porque, atualmente, a lei exige que o clube de futebol honre até o fim qualquer contrato de trabalho com jogador. Uma mudança nessa regra está colocando frente a frente os interesses dos atletas da elite do futebol brasileiro e os clubes.

A alteração, que limita a 'multa' a 12 meses e só enquanto o jogador estiver desempregado, foi aprovada na semana passada na Câmara dos Deputados. Ela faz parte de um enorme pacote de modificações e reorganização de toda a legislação esportiva brasileira, que vem sendo discutido desde 2017, e que ganhou o nome de Lei Geral do Esporte, ou Nova Lei Pelé.

Em protestos realizados em todos os jogos da rodada da Série A, mas também em partidas do fim de semana das Séries C e D e de segundas divisões estaduais, jogadores taparam as bocas com as próprias mãos em forma de reclamar que não foram ouvidos pelo relator da Lei Geral do Esporte, o deputado federal Felipe Carreras (PSB).

"Há 20 dias a gente teve reunião com a Faap (Federação das Associações de Atletas Profissionais). O representante sentou na cadeira com representante de confederações. Eu falei com o Alfredo [Sampaio], que é presidente do sindicato [Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol, a Fenapaf]. Estava publicado o texto do relatório quando ele me ligou. Foi ouvido. Uma coisa é você ouvir. Outra coisa é concordar. A gente há de convir que essa narrativa de não ouvir não existe. Ou ouvi, mas decidi não mexer nesse ponto", diz Carreras.

Como relator, cabe a ele sentar com os mais diversos atores diretamente envolvidos naquele projeto de lei, ponderar as propostas e argumentos de todos os grupos, e apresentar um texto para votação dos deputados. Carreras foi presidente da Comissão do Esporte na Câmara no ano passado e relator de um projeto que correu na Casa, apensado à Nova Lei Pelé que veio do Senado. Durante essas discussões, tanto a Faap quanto a Fenapaf foram ouvidas.

A alegação dos jogadores de elite parte da ideia que os sindicatos não falam por eles. "Os representantes dos atletas deveriam ser os sindicatos. O problema é que eles não se sentem representados pelos sindicatos", diz o advogado Filipe Rino, porta-voz dos jogadores. "Tanto é que os sindicatos deixaram passar isso sem nenhum tipo de discussão."

Filipe e seu irmão Thiago são, segundo ele, os únicos não-atletas no grupo de WhatsApp em que o protesto foi organizado e que existe desde 2020. Eles têm um escritório especializado em representar jogadores em processos trabalhistas contra clubes. De acordo com Rino, eles representam mais de 2 mil atletas, em mais de 3 mil processos.

São desses processos, e dessas dívidas, que os clubes querem se livrar. Atualmente, quando um clube rescinde um contrato, ele precisa pagar ao jogador, no mínimo, todo o valor que ainda seria pago dali até o fim do acordo. Pelo texto aprovado na Câmara, essa obrigação cairia a 12 meses.

E, quando o atleta em questão assinar por novo clube, a dívida com o antigo ou acabaria (se o novo salário for mais alto) ou seria reduzida à diferença entre o novo salário e o antigo — exemplo: se o jogador ganhava R$ 100 mil e assinar por um novo clube para ganhar R$ 75 mil, o antigo precisa pagar só a diferença de R$ 25 mil, por 12 meses. Se o salário for de R$ 125 mil, a dívida é encerrada.

"A enorme maioria dos jogadores de futebol, 95% deles, tem salários baixos e contrato de um ano. O cara que participa de uma competição regional tem um contrato curto, de menos de um ano. Jogou dois meses, mandaram embora, continua tendo que pagar 100% da multa. Só muda para contratos longos", argumenta Carreras.

Rino discorda. "O clube menor faz contrato de um ano e simplesmente manda os caras embora com uma mão na frente e outra atrás. A lei é para todos e esses meninos de clubes menores vão ser muito afetados. O efeito cascata é que o clube vai contratar 70, 80 atletas, e vai dispensar a hora que quiser. Porque a verdade é que ninguém paga a cláusula compensatória sem ação na Justiça, só quatro: Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras."

Ele argumenta que a proposta tira um direito do atleta e dá mais um benefício aos clubes de futebol, já ajudados por diversas legislações recentes. "Os clubes tiveram o Profut. Deu certo? Não. Veio a Lei da SAF, parcelando em 10 anos. E agora isso. É muito benefício para clube que não tem responsabilidade nenhuma com seu trabalhador. Se você tira a obrigação que o clube tem, aí vira a farra do boi. O contrato de trabalho de um atleta é diferente de qualquer outro. Tem que ter esse equilibrio, é a garantia para ambos os lados", opina o advogado.

FORAM OUVIDOS?

A ONG Atletas Pelo Brasil, que já foi presidida por Raí, teve participação ativa nas discussões da Lei Geral do Esporte, assim como a Comissão de Atletas do Comitê Olímpico do Brasil (Cacob). Mas a elite do futebol brasileiro não participa nem de um grupo nem de outro. A modalidade é a única olímpica que não tem comissão de atletas constituída e, mesmo com os jogadores de futebol sendo o maior grupo com direito a voto para a Comissão de Atletas do COB, ninguém nunca se candidatou.

"Se você quer falar com médico você fala com CFM Quer falar com advogado, você fala com OAB. Quer falar com jornalista fala com sindicato dos jornalistas. E no futebol, você fala com quem? Eles que se juntem e elejam alguém para falar por eles, então", reclama Carreras.

Rino opina que os jogadores de futebol nem têm ideia de que podem ter uma comissão ou votar nas eleições de atletas do COB. "Eu duvido muito que os atletas tivessem conhecimento de que era possível fazer uma comissão. Eles não têm. Eu lido com os atletas menores, médios e grandes. Eu te garanto que nunca chegou a eles."

Paralelamente, a Federação das Associações de Atletas Profissionais conseguiu duas grandes vitórias na votação da semana passada. Além de conseguir voltar a ter direito a ficar com uma parcela do salário de todos os jogadores profissionais do país, de 0,25%, a entidade também conseguiu aprovar a ampliação, de 0,2% para 1%, da taxa que deve ser paga a ela em cada transação de jogador.

Só no ano passado, os clubes brasileiros arrecadaram cerca de R$ 1 bilhão só com transações internacionais, o que significaria R$ 10 milhões para a Faap.

"Eu acho muito [dinheiro]. Eu perdi. Foi um destaque de plenário do deputado Afonso Hamm (PP-RS), que teve só 18 votos contra. Para mim, deveria ser facultativo, mas o plenário decidiu assim. O mesmo plenário que ano passado havia acabado com a Faap", argumenta Carreras.

Como sofreu diversas modificações, o projeto da Lei Geral do Esporte volta ao Senado. Romário (PP-RJ) e Leila do Vôlei (PDT-DF) estão entre os candidatos a serem relatores. Carreras acha que, se os clubes decidirem se movimentar de forma mais contundente, sairão vitoriosos na queda de braço.

"Quando os clubes entrarem em campo e jogarem para a torcida, você acha que a torcida fica com quem? Porque não é para botar comida na mesa da família, é para trocar o Porsche por uma Ferrari. Quando a torcida entender isso, que lesa o clube dela, ela vai entrar. E quando a torcida entrar, tudo que é político vai correr", analisa Carreras.