Vitória da Conquista - Jogadora do time de futebol feminino do Vitória da Conquista (BA), Tatiane dos Santos da Silva, 21, entra em campo também contra o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes.

Imagem ilustrativa da imagem Jogadora de futebol entra em campo contra abuso sexual
| Foto: iStock

Em 2017, ela fugiu do povoado de Inhobim, distrito de Vitória da Conquista, onde morava com o pai e três irmãos menores. Além dos afazeres domésticos e com os pequenos, ela relata que passou a ser "procurada na cama" pelo pai, depois de a mãe ter fugido para escapar de violência doméstica.

Tatiane bateu às portas do Conselho Tutelar Rural que lida com uma cultura feudal pela qual os homens podem fazer o que quiser com suas mulheres e filhas. "Ela chegou com várias lesões no corpo e provas de que vivia como mulher do pai desde os 7 anos", relata Joyce Fonseca, conselheira que acompanhou a adolescente nos serviços de acolhimento do município, onde esse tipo de abuso é epidêmico.

Preso um ano e meio depois da denúncia, o pai foi condenado a 26 anos de prisão.

Passados quase cinco anos, Tatiane começa literalmente a viver com as próprias pernas. Virou atacante do time feminino da cidade, trabalha como vendedora e após concluir o ensino médio sonha em ganhar fama.

"Antes de chegar ao abrigo, eu era uma Tatiane sem chão, isolada do mundo. Não sabia o que era viver, sentir amor de pai e mãe. Passei por muito sofrimento e achava que tinha nascido para viver aquilo. Na casa de acolhimento, eu tinha muitos pesadelos com meu pai. Comecei a sofrer abuso sexual desde os 7 anos. Morava na zona rural com ele e três irmãos menores.

Na 5ª série, teve uma palestra no colégio. O que a professora falava me chamou atenção. Fiquei com a cabeça meio perturbada. Eram coisas parecidas com o que estava acontecendo comigo.

Quando fiz 14 anos, meu pai disse que a partir daquele momento eu seria a esposa dele. Ele teve mais de 30 mulheres. Todas iam embora com dois, três dias. Mesmo com mulher em casa, ele vinha me procurar na cama de madrugada.

Minha mãe foi embora quando éramos muito novos. Ele contava que ela abandonou a gente. A verdade é que foi para São Paulo porque ele batia muito nela. Ela queria ter levado os filhos, mas foi ameaçada de morte.

Eu apanhava por não querer ceder pra ele na cama. Acordava machucada, com sangramento. Acabei me acostumando com aquela rotina.

Como a gente cuidava do bar, eu e meus irmãos aprendemos a beber. Percebemos que era um jeito de não sentir dor. Estávamos virando adolescentes alcoólatras.

Desconfiava que ele abusava da minha irmã menor. Ameacei ele, dizendo que ia fazer uma denúncia. Nesse dia, ele tirou minha roupa e me bateu na frente dos meus irmãos. Disse que me mataria.

Minha irmã ficou com muito medo e negou. Depois que denunciei para o Conselho Tutelar, foi constatado que ele também abusava dela.

Com 16 anos, fiquei com um menino na escola. Como meu pai colocava meus irmãos pra ficar de olho em mim, eles contaram que eu estava namorando. Quando voltei da escola, sabia que ia apanhar. Ele me pegou nua no quarto e me jogou na sala na frente dos meus irmãos. Me bateu muito. Na cabeça, na coluna.

Depois, ele pegou um pedaço de carne na geladeira e mandou eu preparar. Tinha uma garrafa de pinga em cima da mesa. Eu tomei todinha para parar de sentir dor. Enquanto ele gritava que ia me matar, segurando uma faca, uma coisa falou no meu coração: você vai ter de sair de casa.

Decidi que ia fugir naquela noite. Com muito medo, troquei de roupa, vesti uma blusa de frio e peguei uma sacola, onde coloquei um tênis, uma lanterna e uma Bíblia, que me acompanha até hoje. Não conseguia mais viver ali, não queria morrer. Queria viver, ter liberdade.

Saí de casa sem saber para onde ir, mas tinha uma certeza de que minha salvação era Deus e a Justiça. Ele ia pagar por tudo que fez. Saí com o coração apertado de deixar meus irmãos, mas nasci para fazer a diferença na minha família. Precisava quebrar aquele ciclo.

Fugi a pé em direção ao povoado onde morava um irmão mais velho. Sabia que meu pai ia atrás de mim. Eu meti a cara no meio do mato, no escuro. Vi o carro dele atravessando a pista. Ele passou bem devagarzinho gritando meu nome. Depois vi um carro de polícia.

Quando cheguei perto da comunidade, peguei o caminho mais longo. Pensei em bater na casa do meu irmão, mas desisti. Lembrei da casa de uma tia. Naquele momento, me senti empoderada. É nela que ia confiar.

Minha tia me acolheu. Quando ela visitava a gente, sentia que tinha alguma coisa errada. Ela ligou para o Conselho Tutelar. No outro dia, tia Joyce foi me buscar e me levou para Vitória da Conquista. Falei tudo que se passava dentro de casa, me levaram ao médico. Mandaram meu pai comparecer para ser interrogado, trazendo os meus irmãos. Tomaram a guarda dele e entraram com pedido de prisão.

Meu desejo era que pagasse por todos os erros. Não foi fácil denunciar meu pai. Ele foi preso um ano e meio depois. Eu me senti arrasada [chora].

Minha família toda me acusava por ele estar sendo preso. Todo mundo me julgou. Menos minha irmã menor, porque ela sabia que eu estava falando a verdade. Ela também passou por isso. Teve outra denúncia contra meu pai. Em 2005, ele foi acusado de abuso sexual pela filha do patrão. A menina tinha 7 para 8 anos e era uma criança especial.

Eu queria ser um super-herói para acabar com tudo isso. Como não sou, quero dar forças para outras crianças e adolescentes, para que elas tenham um ponto de referência.

Usei o esporte para fugir daquele mundo, distrair as emoções e esquecer. Jogava no colégio, sempre fui aluna exemplar, apesar das dificuldades em casa. Sofria preconceito. Diziam que era coisa de macho, que mulher não pode jogar.

Cada chute que eu dava, menor era a dor que eu sentia. Chuto muito forte até hoje. Era como se eu pegasse meus problemas, fizesse uma bola de neve e chutasse em direção ao gol. Foi um jeito de lidar com essa mágoa, esse sentimento ruim. Cada vez que chutava a bola era ainda como se estivesse chutando minha vida pra frente. Tenho várias medalhas e troféus.

Minha história é meio parecida com a da Marta [jogadora da seleção]. Estava sempre jogando com os meninos, até que uma menina que jogava no time de futsal me convidou para treinar. Foi lá que um olheiro me viu.

Comecei a ficar conhecida na cidade, joguei em vários times. Quando disputei a primeira copa de futsal, o coordenador de futebol do Vitória da Conquista me convidou para fazer um teste. Estavam precisando de uma atacante. Falei que nunca tinha jogado futebol de campo. Fiz o teste como lateral na equipe reserva. Ganhamos de 7 a 0 do time titular e eu marquei quatro gols.

Nunca tinha jogado em um time profissional antes. Comecei a disputar o Campeonato Baiano, viajamos para vários lugares. Achei maravilhoso. Era um mundo novo. O jogo virou e o meu passado começou a ficar pra trás.

Minha meta é jogar no exterior. Infelizmente, o futebol feminino não é tão valorizado. São portas difíceis de serem abertas.

Ano passado, fui chamada pelo Juventude, que é o segundo time profissional da cidade, para disputar o Campeonato Brasileiro da Série A2. Mas veio a pandemia e suspenderam os campeonatos.

Pretendo fazer duas faculdades: direito, porque faz parte da minha história, e educação física, outra âncora. Espero que essa minha história de superação toque no coração de quem está angustiado, com dor e sem força. Eu me tornei uma vencedora."

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