SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O judoca Fethi Nourine, 30, afirma que não se arrepende de ter se recusado a lutar nas Olimpíadas de Tóquio-2020 após descobrir que poderia enfrentar um rival de Israel, o lutador Tohar Butbul. Em entrevista à reportagem, o argelino disse que faria tudo novamente.

"Não, nunca me arrependi e não irei me arrepender. Continuarei a falar sobre o sionismo, a cumplicidade, a hipocrisia das organizações internacionais e as mentiras sobre nosso povo [muçulmanos]", declarou Nourine.

"Organizações internacionais clamam pela liberdade individual. Foi o que fiz: retirei-me [das Olimpíadas] e boicotei o confronto com o atleta da entidade sionista. Ia contra minha vontade pessoal. Portanto, não cometi crime", defende Nourine.

O argelino afirma que seguiu os princípios da Carta Olímpica ao protestar pelos direitos do povo palestino.

"Organizações internacionais e os valores olímpicos clamam pelo islã e pela liberdade. Israel vai contra todos os princípios dessas organizações. Eles ocuparam uma terra, estabeleceram um Estado em um local que já tinha seu próprio povo e desrespeitam todos os direitos humanos", criticou o judoca.

Nourine se refere ao artigo 6 da Carta Olímpica, que estabelece que os direitos e a liberdade "devem ser assegurados sem discriminação de qualquer tipo, como raça, cor, sexo, orientação sexual, idioma, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, propriedade, nascimento ou outro status".

No entanto, a recusa do judoca em lutar fez o COI (Comitê Olímpico Internacional) responder à época que havia sido uma violação ao documento.

Por abandonar a competição, ato que também foi acompanhado pelo técnico Amar Benikhle, o lutador teve inicialmente a credencial cassada e foi mandado de volta à Argélia. A FIJ (Federação Internacional de Judô) já os havia suspendido preventivamente.

Reunida, a Comissão Disciplinar da FIJ decidiu punir Nourine e Benikhle com uma pena dura, raramente vista no esporte: dez anos de suspensão de todas as competições e atividades promovidas pela entidade.

Em Olimpíadas, punições duras por causa de manifestações políticas foram mais comuns em épocas passadas.

Nos Jogos da Cidade do México, em 1968, os americanos Tommy Smith e John Carlos, ouro e bronze nos 200 m, respectivamente, levantaram os punhos fechados, com luvas negras, durante a cerimônia do pódio. O gesto, referência ao movimento Panteras Negras, foi um protesto contra o racismo nos Estados Unidos.

Pelo ato, foram excluídos da competição e suspensos pelo COI, mas mantiveram suas medalhas. Smith e Carlos abandonaram o atletismo no ano seguinte.

Em Seul-1988, houve o maior escândalo de doping da história olímpica. Ben Johnson havia vencido a final dos 100 m, ao bater o rival Carl Lewis e conquistar o novo recorde mundial. Dois dias depois, porém, foi descoberta a farsa: o exame antidoping do canadense acusou a presença do esteróide anabólico estanozolol. O velocista teve destituída a medalha e foi suspenso por dois anos.

Outro caso famoso, este de rebelião, aconteceu nas Olimpíadas de Pequim-2008. Ara Abrahamian jogou a medalha de bronze no chão após a cerimônia de pódio da luta greco-romana (categoria até 84 kg).

O lutador, nascido na Armênia e naturalizado sueco, estava irritado pela eliminação na semifinal, em decisão dos árbitros. Acabou suspenso, mas autorizado pela Fila (Federação Internacional de Lutas Associadas) a voltar a competir no ano seguinte.

Todos os casos tiveram punições bem mais brandas do que a dada a Nourine. A federação de judô justificou a medida dizendo que "é evidente que os dois argelinos, com más intenções, usaram os Jogos Olímpicos como plataforma de protesto e promoção de propaganda política e religiosa, o que é uma violação clara e grave dos estatutos e ao Código de Ética da FIJ e à Carta Olímpica".

Os dirigentes da FIJ também invocaram o famoso artigo 50 da Carta Olímpica, que proíbe qualquer "tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial", sendo vetada essa iniciativa "em quaisquer locais, instalações ou outras áreas olímpicas". Nourine considera a punição injusta.

"Foi um castigo cruel e esperado. Essa é a prova da cumplicidade e apoio da Federação Internacional [de Judô] com a entidade terrorista sionista, que a cada dia mata, prende e sitia palestinos inocentes", disse o judoca.

"Com base em que [critérios] estou sendo punido por tanto tempo?", questionou.

De fato, nos Jogos Olímpicos, o COI adotou tom de flexibilidade em relação ao tema. Atletas que fizeram manifestação política no pódio, por exemplo, levaram apenas advertências, mas não houve punição.

No arremesso do peso, a americana Raven Saunders, 25, que ficou com a medalha de prata, ergueu os braços e os cruzou, em forma de X. Na entrevista após a conquista, disse que o gesto significava "o cruzamento onde todas as pessoas oprimidas se encontram".

O COI finalizou o assunto após Saunders perder a mãe, Clarissa, dias após a conquista da medalha olímpica. A morte serviu para entidade dar fim ao caso, sem ter de tomar alguma atitude prevista por ela própria em situações de desrespeito às regras.

Já as chinesas Bao Shanju e Zhong Tianshi, campeãs olímpicas da prova de velocidade por equipes do ciclismo pista, usaram broches do ditador Mao Tse-Tung, que governou a China de 1949 a 1976.

O Comitê Olímpico Chinês informou ao COI que as ciclistas foram avisadas de que não poderiam usar tais emblemas em cerimônia de pódio e prometeu que isso não aconteceria novamente. O comitê internacional encerrou o caso.

A suspensão dada a Nourine, na prática, encerra a carreira do judoca. Ele só poderia voltar a competir aos 40 anos, quando a maioria dos atletas de alto rendimento já se aposentou.

Cabe ainda recurso ao TAS (Tribunal Arbitral do Esporte), em Lausanne, na Suíça, última instância de julgamento no esporte. O argelino afirma que irá lutar por seus direitos até o final.

"Sim, vou apelar. Se eles insistem em punir, vou insistir em expô-los também. Mostrarei isso nos próximos dias", respondeu Nourine, que é bastante ativo nas redes sociais na defesa da causa palestina.

Na última terça-feira (14), ele postou no Instagram a imagem de Muhammad Arda, 39. O palestino foi recapturado pela polícia israelense após escapar da prisão de segurança máxima de Jalboua, no norte da Cisjordânia no último dia 6.

Arda, preso desde 2002, foi condenado à prisão perpétua por participar de operações militares contra Israel. Ele é acusado de pertencer às Brigadas Al-Quds, milícia armada que tem Israel como inimigo e defende um Estado palestino soberano.

"Oh, organizações internacionais: onde estão os direitos humanos que vocês defendem enquanto vemos o efeito da tortura nos rostos dos prisioneiros? Ou é culpa deles serem muçulmanos?", escreveu Nourine.

É um ativismo que o judoca não pretende abandonar, mesmo após a suspensão, Ele afirma que continuará usando as redes sociais e outros meios para defender os valores que acredita.

"A causa Palestina é uma causa justa. E uma pessoa sensata e justa não se afasta dela. Sou muçulmano e é meu dever apoiar meus irmãos muçulmanos. E isso é uma crença na minha religião", finaliza.