SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Assinada por Federico Addiechi, então chefe de relações públicas da Fifa, a carta enviada em 2003 ao historiador José Moraes dos Santos Neto agradecia pelo material enviado à entidade. Não tocava, porém, no seu tema central: o reconhecimento esperado por ele de que a Associação Atlética Ponte Preta teve o primeiro jogador negro do futebol.

O professor da PUC em Campinas levanta há tempos dados sobre os primeiros anos do esporte no Brasil, na Argentina e no Uruguai.

Torcedor da Ponte Preta, ele é o responsável pelas informações conhecidas sobre Jorge Araújo Miguel do Carmo, um dos fundadores do clube em 11 de agosto de 1900 e integrante de sua primeira equipe.

"O que sabemos com certeza é que ele ajudou a fundar a Ponte e fez parte do seu primeiro time. Há poucas fontes primárias de informação. Ele provavelmente atuou em outras cidades em que o trem parava porque era funcionário da Companhia Paulista de Estradas de Ferro", explica o historiador.

Santos Neto defende que a Ponte teve um atleta negro, enquanto time de futebol organizado, antes do Bangu. A equipe carioca foi fundada em 1904, mas organizada inicialmente pela Fábrica Bangu em 1889.

"Fala-se do Bangu e do Vasco. O time do Bangu foi criado como estratégia da fábrica de tecidos para fazer os operários esquecerem o sindicalismo. A introdução dos negros no futebol do Vasco aconteceu na década de 1920, pela necessidade de afirmação da colônia portuguesa contra a elite da zona sul do Rio formada por Fluminense, Flamengo e Botafogo", sustenta.

O historiador pede tempo, paciência e patrocínio para descobrir mais sobre a história de "Migué do Carmo", como ele ficou conhecido. Toda a massa de documentos da empresa a partir de 1870 está em Jundiaí, mas com pouca organização.

Ele conseguiu encontrar a ficha cadastral do empregado, seu número de inscrição e uma foto. Estima que em 2022, quando se aposentar, terá mais tempo para se dedicar ao assunto.

"A gente não tem registros do dia a dia da Ponte até 1906. É preciso aprofundar essa pesquisa. Tenho certeza de que vamos achar mais. A comprovação existe de que ele jogou no primeiro time. Temos as fichas técnicas. O que não possuímos são detalhes, uma biografia dele ou de qualquer outro jogador dessa época", diz.

A tese sobre Miguel do Carmo ter sido o primeiro negro do futebol brasileiro pode ganhar força se mais documentos, jornais, fotos e informações sobre sua participação forem encontrados.

No ano da criação da Ponte, o jogo no Reino Unido era reservado à elite branca de escolas tradicionais e ainda engatinhava em outros países. Há registros de negros nos primórdios do futebol britânico, mas a Fifa nunca oficializou um pioneiro. Essa é a busca do historiador com o pontepretano.

Sabe-se que ele nasceu em abril de 1885, três anos antes da abolição da escravatura, atuou pelo clube de Campinas até 1904 e morreu em 1932, aos 47 anos, por problemas causados por uma cirurgia no estômago.

No início deste século, dois bisnetos de Miguel do Carmo tentaram jogar pela Ponte, mas não deram certo.

A falta de mais registros também carrega uma dose de azar. Entre 1900 e 1920, Campinas teve um jornal chamado "O Comércio de Campinas", e os exemplares estão no arquivo do governo do estado. O filho do dono da publicação, Henrique de Barcellos, começou a gostar de futebol e a escrever sobre o esporte.

"Isso aconteceu em 1906. Então temos muito mais registros sobre o segundo time da Ponte, que teve Amparense, o primeiro ídolo do clube. Havia também Moraes, Aranha, outros jogadores afrobrasileiros que atuaram", afirma o historiador.

O relatório para a Fifa nasceu de participação em um ciclo de debates sobre questões raciais. O pesquisador reuniu toda a documentação não apenas sobre Miguel do Carmo, mas a respeito da Ponte Preta ter sido pioneira em abraçar a participação de negros em uma época amadora, quando os jogadores levavam as traves nos ombros até um jardim.

A reportagem entrou em contato com as assessorias de imprensa do clube e da Fifa para comentar o tema, mas não recebeu respostas até a publicação deste texto.

Uma fonte de registros das atividades da Ponte nos seus primórdios são relatórios do intendente da cidade, que costumava chamar a polícia porque o futebol estragava os gramados das praças. "Trata-se de garimpar informações, realmente. É um trabalho de persistência", constata Santos Neto.

Quem também trabalhava na Companhia Paulista de Estradas de Ferro era o escocês Thomas Scott, que havia atuado pelo Dundee, no seu país natal, e foi o responsável por introduzir o esporte em Campinas.

A Ponte Preta foi criada por operários, funcionários da empresa e imigrantes, vários com o ideal do anarquismo. Eles perderam poder no clube e se afastaram em 1920, quando a elite campineira entrou na agremiação e mudou sua característica.

"Miguel do Carmo era um ferroviário, fiscal de linha, participante da fundação da Ponte como uma democracia racial pela visão política e social dos moradores do bairro de Morrinhos, funcionários de ideologia anarquista que tinham sentimento de pertencimento àquela região", finaliza o professor.