PORTO ALEGRE, RS (UOL/FOLHAPRESS) - Se hoje o calendário do futebol brasileiro inviabiliza grandes viagens pelo mundo, no passado, o Internacional se acostumou a levar seu escudo a "plagas [regiões] distantes", como cita seu hino. Há 38 anos, por exemplo, uma excursão para a Ásia para disputar uma taça no Japão e jogar mais uma série de amistosos na China, até contra a seleção do exército.

O time gaúcho tinha acabado de conquistar o Torneio Heleno Nunes de 1984 e partiu para uma excursão pelas potências asiáticas. Primeiro, disputou a Copa Kirin, levando o título ao vencer a seleção universitária do Japão por 3 a 0, empatar com a seleção da Irlanda em 0 a 0, bater o Toulouse, da França, por 4 a 1, e depois vencer a seleção da Irlanda na final por 2 a 1.

Após erguer a taça em solo japonês, o time treinado por Otacílio Gonçalves —e que tinha nomes como Gilmar Rinaldi, Dunga, Ruben Paz e Mauro Galvão— partiu para mais uma série de amistosos, agora na China. Uma China.

"O time era bom, o Inter tinha uma equipe boa. Não sei como funcionam esses convites, mas acabou que a gente foi sorteado, fomos premiados [risos]. Foi uma aventura, vamos combinar. Não era coisa simples. Foi uma experiência incrível", acrescentou o ex-zagueiro.

MUITO DIFERENTE DE HOJE EM DIA

A China do início dos anos 1980 passava por importantes mudanças econômicas e buscava se aproximar do Ocidente. "O país começou a criar as Zonas Econômicas Especiais [ZEE's], com abertura de mercado ao capital estrangeiro. Só em 1984 mais de dez cidades costeiras da China tornaram-se ZEE's", contou o historiador Raul Pons, que é graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor e especializado na história do Colorado.

Além disso, o país assinou, no fim de 84, a Declaração Conjunta Sino-Britânica, que garantiu o retorno de Hong Kong à China a partir de 1997. "Nascia assim o termo 'um país, dois sistemas' no qual a China reconhecia o direito de Hong Kong [e mais tarde Macau] de manter o sistema capitalista por 50 anos após a unificação com a China", acrescentou Pons.

No âmbito esportivo, 1984 marcou o retorno da China às Olimpíadas. Depois de participar dos Jogos de 1952, o país boicotou todas as demais edições da competição em protesto pela participação de Taiwan. Em agosto de 84, porém, os chineses estiveram em Los Angeles, nos Estados Unidos, rompendo com o boicote de países socialistas aos Jogos.

Se hoje o futebol chinês é firme e milionário, na época era amador. O campeonato nacional era formado por seleções municipais e das forças armadas. Um deles foi o adversário do Inter em 9 de junho de 1984. Era o Exército de Libertação Popular Bayi Football Club, a seleção do exército. Bayi significa 1º de Agosto, que é a data de fundação do Exército de Libertação Popular.

"A gente sabia que iria jogar na China, mas não tinha ideia que o futebol tinha tanta penetração lá. Que o esporte tivesse adesão. Quando chegamos lá, sentimos como eles gostavam e como estavam ansiosos pelos jogos. Acho que jogamos em Pequim e depois em Hong Kong. A experiência foi maravilhosa. Lembro do estádio cheio, chegamos lá sem imaginar que os chineses gostassem tanto de futebol", contou Mauro Galvão.

INTER EMPILHA VITÓRIAS E CRIA MARCA HISTÓRICA

O desempenho do Inter na China foi amplamente positivo. Há exatos 38 anos, o Colorado bateu o 1º de Agosto, ou seleção do exército chinês, por 3 a 0, dois dias depois fez 1 a 0 na seleção da China, e no dia 15 de junho aplicou 5 a 0 na seleção de Hong Kong.

A sequência de partidas na Ásia está presente na história do Inter como parte da maior marca de invencibilidade que a equipe gaúcha ostenta em seus mais de 100 anos de história. Entre abril e outubro de 1984, o time ficou 39 jogos sem perder.

Mais tarde em 1984, o Internacional formou a base da seleção brasileira que participou das Olimpíadas de Los Angeles, ficando com a medalha de prata. "Foi um ano bem agitado, na verdade. Além dos amistosos e da Copa Kirin, houve os Jogos Olímpicos. Foi um ano bem diferente ali", explicou o ex-zagueiro.

MURALHA DA CHINA, APARELHO DE SOM, CAMELOS, REMÉDIOS E COMIDA 'ESTRANHA'

Da viagem para a China Mauro Galvão não guarda apenas as lembranças dos jogos e do futebol, mas também das dificuldades de alguns colegas em se adaptar com a alimentação, do famoso pato laqueado, prato típico da região, da visita à Muralha da China e de um aparelho de som importado que trouxe de lá.

"Eu trouxe um aparelho de som que naquela época era um negócio fora do normal. Eu nem lembro a marca, mas me deu um trabalhão para trazer. Eu tive que botar em uma mala enorme. Mas fizemos compras, claro. Eu trouxe algumas lembranças. Se fosse hoje, com certeza seria computador e tal. Som e TV eram as coisas que mais chamavam a atenção", sorriu Galvão.

"A gente foi visitar a Muralha da China, claro. Chama muita atenção pela altura, por ser um monumento histórico. A alimentação é diferente, né? A gente tem que se adaptar e é bem, digamos, fora [do comum]. Uma coisa é Espanha e outros países europeus, e outra é chegar à China. A gente teve dificuldades lá, alguns companheiros sentiram dificuldade para comer. Tinha o famoso pato já, né? É uma comida diferente, então alguns caras sentiram. Tivemos que adaptar o cardápio. Eu comi pato, mesmo, não queria nem saber [risos]", brincou.

Na visita à Muralha, alguns jogadores, como Gilmar Rinaldi, aproveitaram para registrar o momento de forma inusitada. Foram fotografados montando em camelos em frente ao monumento.

E não foram apenas eletrônicos ou vitórias que voltaram na bagagem dos colorados. A ida à China também serviu para procura por remédios para o goleiro Benítez, que em 1983 tinha se chocado com o atacante Celeni Viana durante um amistoso e sofrido uma grave contusão na medula, que forçou o fim de sua carreira.

Jornais da época contam que o então presidente do clube, Roberto Borba, buscou medicamentos na ásia para o tratamento do ex-goleiro durante a viagem com a delegação vermelha.