A pandemia do novo coronavírus obrigou a bola a parar de rolar nos gramados brasileiros, mas o futebol voltou à cena no último fim de semana com manifestações de grupos de torcedores a favor da democracia. Em São Paulo e no Rio de Janeiro as ruas foram tomadas por torcidas rivais, que se uniram e marcharam juntas para reivindicar e consolidar valores democráticos, como a legitimidade das instituições e o respeito à vida humana. Em Londrina, corintianos se manisfestaram de forma pacífica no Calçadão, no centro da cidade, e com uma faixa pediram democracia.

Para o sociólogo e professor da UEL (Universidade Estadual de Londrina) Marcos Rossi, chega até "espantar" a demora dos brasileiros em saírem às ruas diante de uma forma de governo que segundo ele depõe contra a sociabilidade democrática "diariamente". O colunista da FOLHA diz não se surpreender com o fato de a iniciativa vir das torcidas de futebol.

"Por estar tão umbilicalmente relacionado com a cultura popular no Brasil, o futebol espelha sentimentos de multidões e serve na linha de frente das insatisfações e dos desejos políticos", pontua Rossi.

Imagem ilustrativa da imagem Futebol e a luta por democracia

PROTAGONISMO

Foi por causa da insatisfação com a questão política e social do país que o futebol também assumiu papel de protagonista em outros momentos da vida brasileira, como no processo de redemocratização, na década de 1980. O professor de Ética e Filosofia Política da UEL Clodomiro Bannwart lembra da democracia corintiana e da importância de trazer novamente o tema para a discussão.

"Em 1983, Sócrates e demais jogadores entram em campo com uma faixa emblemática que dizia: 'Ganhar ou perder, mas sempre com a democracia'. Naquela época lutava-se pela conquista da democracia. Hoje, a luta é pela sua manutenção e aprofundamento", afirma. "A união de torcidas adversárias em torno da defesa democrática tem um valor simbólico muito expressivo ao reatualizar nosso passado e lembrar a todos que a democracia é um princípio basilar que sobrepõe diferenças e divergências".

VIOLÊNCIA

A presença de grupos de torcedores nas atuais manifestações democráticas é um contraponto em relação à maioria dos nossos jogadores famosos, que, com raras exceções, não se posicionam sobre assuntos importantes para a vida dos brasileiros. Não dá para descartar também que muitos destes grupos pertencem a torcidas organizadas, que ao longo das últimas décadas foram responsáveis por atos de vandalismo e brigas generalizadas dentro e fora dos estádios.

"A polarização afeta a todos. Não seria diferente com as torcidas. Há democratas e fascistas entre seus membros. Da mesma maneira, durante as décadas de ditadura civil-militar (1964-1985), clubes, dirigentes e torcedores estiveram ora em favor do regime, ora ao lado da democracia", ressalta Marcos Rossi. "A realidade é tensa, contraditória e exibe uma impressionante diversidade de sentimentos, interesses e atitudes, dentro e fora de campo".

Chama a atenção a "união" em torno de um mesmo pensamento de torcedores historicamente rivais e que se mostravam incapazes de agirem em um mesmo sentido, independentemente das cores que vestem. Para Bannwart, a intensificação da intolerância e de atitudes que clamam por soluções fora das regras do jogo democrático têm aproximado setores da sociedade, além de bases ideológicas distintas.

"A manifestação de times adversários carregando uma mesma bandeira demonstra, de forma pedagógica, a necessidade de a sociedade também estar unida em torno de princípios comuns que assegurem a permanência das regras do jogo democrático", frisou.

2013

Apesar de reconhecer as diferenças intrínsecas nas manifestações populares de 2013 com as atuais, Clodomiro Bannwart reconhece que a postura antidemocrática vista neste momento possa fomentar novos movimentos da sociedade brasileira. "É possível que diversos setores da sociedade se identifiquem na defesa e preservação da democracia, fomentando movimentos semelhantes aos de junho de 2013 ou com o mesmo perfil das Diretas Já".

O fim de semana será marcado por novas manifestações democráticas. Em Londrina, um evento está agendado para domingo (7), a partir das 14h, no Calçadão. Em uma rede social, o movimento Londrina Organizada Contra a Ascensão do Fascismo no Brasil tinha mais de 1,6 mil confirmações até a sexta-feira (5).

"Para ser duradouro, o sentimento democrático tem de se converter em valor social, em algo que transmitimos aos nossos filhos. Respeito, tolerância, paz, tudo que inspira a democracia precisa ser compartilhado diariamente. Quando isso for habitual, manifestações pró-democracia serão desnecessárias", finaliza Rossi.

Coletivo de torcedores do LEC se posiciona contra o "futebol moderno"

A paixão pelo Londrina fez nascer em 2014 um coletivo denominado Bancada Alviceleste. O grupo não se considera uma torcida organizada e se posiciona contra o chamado "futebol moderno". "Existe, hoje, uma tentativa de capitalizar o futebol para as grandes empresas, governos e cartolas, transformando nosso esporte em um mercado altamente lucrativo para poucos", afirmou a comunidade em resposta à FOLHA.

O grupo se considera do "campo progressista" e afirma ter torcedores de centro-esquerda e esquerda. O coletivo possui canais de comunicação em duas redes sociais. "Nosso papel não é o de ser torcida organizada, mas sim um movimento que reúne torcedores, de todas as idades, que tenham todas as formas de torcer e queiram pensar e refletir sobre o esporte mais popular do mundo e as relações com a nossa sociedade", frisou o grupo.

A Bancada Alviceleste informou que decidiu por não participar da manifestação agendada para domingo em Londrina, principalmente em razão da pandemia do coronavírus e da necessidade do isolamento social. Entretanto, ressaltou o seu apoio às causas democráticas.

"Apoiamos toda e qualquer manifestação pacífica contra ideias fascistas e racistas. Entendemos como natural (o envolvimento das torcidas), principalmente quando temos que reafirmar valores como a democracia, o antirracismo, o antifascismo. Esse combate pode e deve ser feito por nós e pelos movimentos sociais".

Em nota oficial, a Torcida Falange Azul, principal organizada do LEC, informou que não faz parte da organização e nem participará do movimento no domingo, também motivada pela pandemia, mas reafirmou o seu ideal democrático. "A Falange Azul é uma instituição que defende a democracia e repudia atos que promovam devaneios autoritários de desrespeito ao estado democrático, fazendo apologia à ditadura, tortura e pedindo fechamento de instituições que fazem parte de governos democráticos".