SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Acusado de racismo contra torcedores corintianos, o comerciante argentino Leonardo Ponzo, 42, não pagou sequer a fiança de R$ 3 mil imposta a ele. O valor foi quitado pelo consulado argentino em São Paulo.

Segundo pessoas que estavam no DOPE (Departamento de Operações Policiais Estratégicas) disseram à reportagem, os funcionários da representação do governo argentino na capital, ao ficarem sabendo do valor da fiança, perguntaram onde haveria um caixa eletrônico do banco Santander, assim sacariam a quantia.

Ponzo foi filmado por torcedores do Corinthians fazendo gestos de macaco em direção aos brasileiros e depois identificado pelas câmeras de segurança do estádio. Ele foi detido no intervalo da partida disputada nesta terça (26), válida pela Copa Libertadores, e levado para o Jecrim (Juizado Criminal Especial) dentro da Neo Química Arena. Mas o caso apenas poderia ser registrado no local em crimes com pena máxima de dois anos de prisão.

Como o gesto do argentino se encaixa como injúria racial, com detenção de até três anos, ele foi encaminhado ao DOPE. Funcionários do consulado argumentaram, na manhã desta quarta (27), que Ponzo não imitava um macaco e estaria apenas se coçando.

A reportagem entrou em contato com o consulado argentino por telefone e email, mas não obteve resposta até o momento.

"Na descida [da arquibancada] ele dizia não entender. Por que estava sendo preso? O torcedor não tem ideia do alcance do sistema de monitoramento. Ele não imagina o quanto está sendo vigiado. Na hora em que mostrei para ele as imagens, ficou quieto. Não tinha o que falar", disse o capitão Paulo Matheus dos Santos Dias, comandante da 2ª companhia do 2º batalhão de Polícia de Choque, responsável pelo policiamento no estádio.

Ponzo já havia sido identificado na metade do primeiro tempo, mas os policiais decidiram esperar até o intervalo para diminuir a possibilidade de confusão. Ao perceber a aproximação dos oficias, segundo o capitão, o acusado tentou se esconder.

Ao retirarem Ponzo da arquibancada, os policiais foram aplaudidos pelo público na Neo Química Arena.

"Fiquei muito inconformado com o que aconteceu. Uma coisa é o cara fazer outro tipo de gesto, xingar... É natural para quem vai ao estádio. Racismo é outra coisa", completa o capitão Matheus.

Em resposta a um tuíte da conta oficial do Corinthians que comunicava o caso de racismo, o Boca Juniors manifestou repúdio "aos gestos racistas e xenófobos de um torcedor na direção dos simpatizantes do Corinthians. Na próxima reunião da comissão diretiva serão analisadas as medidas a serem implementadas e sanções que podem ser aplicadas".

"O ato praticado no estádio foi de injúria racial. Mas o STF (Supremo Tribunal Federal) equiparou em 2021 a injúria racial ao crime de racismo. Os crimes de racismo são inafiançáveis e imprescritíveis. Isso já é objeto de projeto de lei no Senado Federal. Eu não concordo com a decisão de determinar a fiança. Não deveria ter sido arbitrada", defende Robson de Oliveira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB em São Paulo.

Não foi este o entendimento dado pelo DOPE, que decretou o valor de fiança para o caso. "O crime praticado tem como pena máxima de reclusão de três anos, fazendo o acusando jus a fiança criminal, a qual foi arbitrada em três mil reais", diz o texto do boletim de ocorrência ao qual a reportagem teve acesso.

O acórdão do STF é de 28 de outubro do ano passado e reconhece que "o crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo."

É a segunda vez em duas semanas que há problemas de racismo em jogos entre brasileiros e argentinos. No último dia 13, um torcedor do River Plate foi filmado atirando uma banana contra a torcida do Fortaleza em partida das duas equipes realizada em Buenos Aires, também pela Libertadores. O clube suspendeu o acusado e prometeu impedi-lo de entrar no estádio Monumental de Nuñez.

Levantamento do Observatório da Discriminação Racial no Futebol aponta que foram registrados cinco casos de racismo contra jogadores ou torcedores brasileiros em partidas de competições sul-americanas desde 2014. Os números são anteriores aos casos envolvendo torcedores de River Plate e Boca Juniors.

Todas as punições impostas pela Conmebol, organizadora da Libertadores e da Copa Sul-Americana, foram financeiras. A maior foi de US$ 30 mil (R$ 148 mil em valores atualizados), paga pelo Barcelona (EQU) no ano passado por insultos raciais contra o atacante Bruno Henrique, do Flamengo.

Somadas as cinco sanções anteriores ao caso do Fortaleza, os clubes que tiveram envolvimento em racismo desembolsaram, no total, US$ 87 mil (R$ 431 mil pela cotação atual) em punições.

"A Conmebol prevê só punição financeira. É como se o racismo tivesse um preço. Os clubes não trabalham a conscientização contra o racismo por causa disso. Vão pagar multa e está tudo bem. É preciso que a Conmebol pense na questão de tirar pontos ou excluir do campeonato. Se isso não acontecer, casos de xingar brasileiro de macaco vão fazer parte de um folclore que ocorre há muito tempo", reclama Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

O código disciplinar da Confederação Sul-Americana não prevê outra punição que não seja financeira para clubes. Em seu artigo 17, diz que a multa a ser paga é de pelo menos US$ 30 mil. Para jogadores, a suspensão é de no mínimo cinco partidas e, no máximo, de dois meses.

A reportagem pediu posicionamento à Conmebol sobre os casos de racismo na Libertadores nas últimas duas semanas e sobre as punições, mas a entidade não respondeu.

O Boca Juniors já foi excluído da Libertadores por causa de sua torcida, mas não se tratou de racismo. Em 2015, em La Bombonera, estádio da equipe, foi atirado gás de pimenta nos atletas do River Plate por uma fresta no túnel de acesso ao campo.

Com o gás atingindo não só os atletas, mas também torcedores e funcionários, a partida não continuou e os donos da casa foram eliminados, com o River, declarado vencedor do confronto por 3 a 0. Diego Blas Biglia, torcedor acusado de jogar o gás, teve a pena dois anos e oito meses de prisão suspensa.

A CBF, que representa as equipes brasileiras, não se manifestou sobre o assunto.