SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Evento em que historicamente se refletem conflitos internacionais de diversas ordens, as Olimpíadas passaram a dar menos espaço para pautas de Estado, como ocorreu especialmente na época da Guerra Fria. A edição de Tóquio-2020 trouxe a percepção de que a política pode se apresentar com o indivíduo, não a nação, em protagonismo.

Claro que a pandemia se impôs como questão premente dos Jogos de 2020, adiados para 2021 justamente pela Covid-19. Mas, na visão de historiadores, a edição fica, para além desta pauta, marcada como arena das "questões universais".

É o que defende Victor Andrade de Melo, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de "História do Esporte no Brasil" (organizado em conjunto com Mary Del Priore, Editora da Unesp).

Os boicotes, mais comuns no século passado, "eram quase uma decisão de Estado", diz o professor, lembrando duas edições esvaziadas de representações dos blocos adversários na Guerra Fria: a de 1980, em Moscou, e a de 1984, em Los Angeles.

Quando fala de "pautas universais", Melo se refere, entre outros exemplos desta edição, à marcha das mulheres contra o machismo e a misoginia. Há ainda questões raciais e manifestações contra a homofobia.

"Quando a gente muda o foco da política [descolando-a da esfera macro], é interessante observar que os atletas e as atletas usam a visibilidade concedida pelo campo esportivo para, de alguma forma, propagar suas bandeiras ou mesmo incomodar as estruturas sempre muito conservadoras do campo esportivo", afirma o historiador.

Se o boicote não é mais tão expressivo, "atletas lutam para que as estruturas do esporte acolham essas reivindicações", diz. "Utilizam suas vitórias e visibilidade pública como forma de propagar suas bandeiras, assim como a gente viu nos movimentos desencadeados ao redor do Vidas Negras Importam", prossegue, lembrando protestos antirracistas aos quais aderiram jogadores de basquete nos EUA, no ano passado.

No caso dessa pauta, houve, porém, reação imediata do Comitê Olímpico Internacional para sufocar uma possível irradiação para Tóquio-2020. O COI ditou que atletas não poderiam fazer manifestações políticas durante os Jogos Olímpicos realizado, incluindo a utilização de camisetas do movimento Vidas Negras Importam. Pressionado, precisou afrouxar um pouco as proibições, permitindo manifestações antes das competições.

No torneio feminino de futebol, jogadoras de várias seleções se ajoelham no gramado no minuto que antecedeu o apito inicial. O gesto se tornou um símbolo da luta antirracista e passou a ser repetido pelo mundo após a morte de George Floyd, um negro sufocado pelo joelho de um policial branco nos Estados Unidos, no ano passado.

"Até estruturas esportivas tão conservadoras, como a NBA, de alguma maneira, tiveram que mudar, porque os atletas começaram a se posicionar de maneira mais clara", diz Melo.

"Por isso esta talvez seja uma das edições mais políticas da história dos Jogos Olímpicos. Eles deixaram de ser políticos por decisões de Estado e se tornaram políticos porque os atletas têm assumido posturas políticas dentro de seus exercícios como atleta, permitindo o espraiamento de suas bandeiras."

A exceção mais notável, até aqui, nestes Jogos, foi o caso do judoca argelino Fethi Nourine e de seu treinador, Amar Benikhlef. Eles se decidiram abandonar a disputa para que Nourine não precisasse lutar contra o israelense Tohar Butbul. A desistência foi anunciada na TV argelina no início dos Jogos. A Federação Internacional de Judô os suspendeu temporariamente, abrindo investigação para estudar a aplicação de punições.

O posicionamento do atleta, que representa país de maioria muçulmana, foi em resposta aos recentes bombardeios entre Israel e diversas nações de origem árabe, com desfecho trágico na Palestina.

No fim do ano passado, o primeiro-ministro Abdelaziz Djerad mencionou o Estado de Israel quando falou sobre "manobras estrangeiras que pretendem desestabilizar a Argélia". O cenário se tornou ainda mais violento neste ano, com bombardeios na Palestina e no Líbano.

Foi a crise mais próxima das situações que ponturaram o século 20. Ainda assim, historiadores recusam o termo boicote para o caso.

"Um boicote na verdade não é uma simples recusa. É um posicionamento que procura fazer jogar uma questão política para uma arena maior e fazer uma pressão", define Victor Andrade de Melo.

"Esse ato do Nourine não vejo como um boicote, como uma pressão. Talvez um posicionamento, um lado mais claro, é a ideia de conscientious objector (ou objetor de consciência), termo utilizado pelo exército dos Estados Unidos quando um indivíduo se recusa a prestar o serviço militar devido a uma questão de religiosa, ética ou moral", acrescenta.

Foi o que ocorreu com o boxeador Muhammad Ali, que, convocado, recusou-se a lutar na Guerra do Vietã, em 1967.

"Ele é campeão mundial dos pesos-pesados, tem que se alistar. Acaba se recusando e perde o título de peso-pesado. Nourine se recusa a lutar por uma questão de consciência própria", diz Maurício Drumond, coautor de "História(s) do Sport -- uma Estratégia de Difusão Científica" e de outros livros sobre a relação entre esporte e política.

Mais recentemente, a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, propôs um boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Inverno que a China vai sediar em 2022. A democrata se posicionou contra o que considera abusos de direitos humanos no país asiático. É um outro conflito --aí, sim, na esfera macro- a se desdobrar até o ano que vem.

Conflitos políticos nos Jogos Olímpicos

1936 - Os Jogos Olímpicos foram realizados na Alemanha nazista três anos após Hitler ter se tornado chanceler no país. Houve protestos dos Estados Unidos e da União Soviética, mas apenas a Espanha boicotou os Jogos em um período de extrema polarização ideológica no país.

1948 - Como retaliação aos países do Eixo, Alemanha e Japão não foram convidados a participar das Olimpíadas. Em sua história, os Jogos também foram marcados pelo cancelamento das edições de 1916, 1940 e 1944, anos localizados em períodos das duas Grandes Guerras.

1956 - As Olimpíadas de Melbourne foram marcadas por boicotes contra a guerra entre Israel e Egito. Ao lado de Taiwan, Líbano e Iraque, o Egito não compareceu aos Jogos na Austrália para protestar contra a intervenção militar franco-britânica no canal de Suez, ponto estratégico entre África e Europa.

1972 - Durante os Jogos de Munique, um comando palestino chamado Setembro Negro sequestrou 11 atletas de Israel e exigiu a libertação de 234 palestinos presos. O episódio resultou na morte de seis treinadores e cinco atletas israelenses, além de um policial alemão e cinco palestinos.

1976 - Guiana e 22 países africanos decidiram retirar suas delegações das Olimpíadas já com as disputas em andamento. O protesto começou porque o Comitê Olímpico Internacional não atendeu ao pedido de exclusão da Nova Zelândia. A razão da solicitação foi a excursão de uma equipe neozelandesa de rúgbi pela África do Sul, onde o regime de apartheid, de segregação racial, durou até 1994.

1980 - A partir de pedido do presidente Jimmy Carter, atletas americanos boicotaram as Olimpíadas de Moscou, em plena Guerra Fria, em posicionamento contra a invasão soviética no Afeganistão. Foi um esvaziamento impactante, acompanhado por esportistas de outros 61 países.

1984 - Para revidar o boicote da edição anterior, a União Soviética se retirou das Olimpíadas de Los Angeles, sendo acompanhada por delegações de outros 16 países.

2016 - Nos jogos realizados no Rio de Janeiro, o Comitê Olímpico Internacional reconheceu Kosovo como nação independente e sofreu ameaça de boicote da Sérvia. Na cerimônia de abertura, Kosovo fez sua estreia nos Jogos.