Música, cerveja e uma pitada de ciência. Essa foi a receita do evento Pint of Science, que levou discussões científicas para três bares de Londrina entre os dias 22 e 24 de maio. A união aparentemente inusitada é considerada uma das principais ações de divulgação científica do mundo, já que está presente em mais de 24 países e, no Brasil, em 120 cidades.

E, um dos temas abordados durante o evento foi o futuro do trabalho e o impacto das novas tecnologias. Os pesquisadores e professores da UEL (Universidade Estadual de Londrina) Maiango Dias, de Psicologia, e André Azevedo da Fonseca, de Comunicação, falaram para o público do Cheers Irish Pub na noite da última terça-feira (23).

Na sua participação, Dias abordou as mudanças causadas pela inovação tecnológica no campo do trabalho. O surgimento de ferramentas que simplificam muitas atividades já se tornou corriqueiro - uma das mais famosas é a IA (Inteligência Artificial) Chat GPT.

“São situações que, agora, têm um impacto muito grande dentro de qualquer contexto de trabalho. Muitos trabalhos já vêm sendo substituídos sistematicamente por robôs, máquinas e ferramentas”, afirma. “O que você precisava de cem homens para fazer há alguns anos, hoje uma única máquina faz sozinha. Pintura de automóvel, por exemplo, é um processo todo computadorizado, robotizado e automatizado.”

Evento foi realizado em bares da cidade e, no último dia 23, reuniu os professores Maiango Dias e André Azevedo Fonseco, ambos da UEL , para falar sobre a tecnologia e as relações de trabalho
Evento foi realizado em bares da cidade e, no último dia 23, reuniu os professores Maiango Dias e André Azevedo Fonseco, ambos da UEL , para falar sobre a tecnologia e as relações de trabalho | Foto: Douglas Kuspiosz

No ponto de vista do pesquisador, à medida que a tecnologia avança, há uma migração dos empregos para outras áreas. Essa situação cria um desafio para o trabalhador, que está na base da transformação tecnológica e possui menos recursos para enfrentá-la. “Eu diria que a maior parte dos trabalhadores do mundo não está ciente de quanto a IA pode vir a afetar seu emprego hoje”, diz.

Sem uma preparação prévia para o avanço de novas ferramentas, há um temor com a extinção de muitas funções profissionais. Trata-se de um risco e de um fenômeno já observado em países periféricos.

“Há sempre mais empregos para pessoas que estão desenvolvendo e utilizando a vanguarda da tecnologia. No Brasil, a gente tem alguns pólos de grande desenvolvimento e outros de muita pobreza, com poucas opções de trabalho”, afirma.

Apesar desse cenário, Dias é enfático ao dizer que “a tecnologia é utilizada por quem detém a tecnologia”, e que ela pode ser utilizada para aprofundar a crise social “se ninguém fizer uso dela para diminuir as desigualdades”.

“Cabe ao Estado manter os cuidados, ter os parâmetros, principalmente, de áreas a serem preservadas ou não, como preservar empregos onde a tecnologia entra pesado. Para poder diminuir o impacto”, ressalta.

Para o pesquisador, o atual modelo de carreira deve ser repensado, assim como o ensino cujo foco é a preparação para uma única profissão. “Eu vou precisar deixar as pessoas aptas a mudar de carreira, a ter transições ao longo da carreira. Me preparar para essas mudanças é mais importante que ter segurança, ter garantia de que você sabe alguma coisa. Pode acontecer de amanhã essa coisa não ser mais necessária e aí a empregabilidade e o trabalhador acabam ficando no prejuízo”.

MITOLOGIA

A fala do pesquisador André Azevedo da Fonseca discutiu algumas mitologias relacionadas ao imaginário das empresas sobre as tecnologias. O pesquisador ressalta que essas ferramentas servem a propósitos do seu tempo histórico, mas há um esforço de empresas em associar o consumo tecnológico a determinadas emoções e sentimentos.

“O que eu tenho estudado é quais são essas emoções manipuladas pelas empresas para impressionar os consumidores e prometer as potencialidades que são típicas da mitologia”, explica. “Tenho interesse em estudar isso porque parte da submissão que a gente se acostumou [a ter] em relação às tecnologias.”

André Azevedo da Fonseca, professor de Comunicação da UEL: "O problema não é a tecnologia enquanto técnica, é o uso político da tecnologia"
André Azevedo da Fonseca, professor de Comunicação da UEL: "O problema não é a tecnologia enquanto técnica, é o uso político da tecnologia" | Foto: Douglas Kuspiosz

Em relação aos impactos no campo do trabalho, Fonseca cita o teórico Evgeny Morozov, que argumenta que as transformações atuais têm a mesma essência das ocorridas durante a Revolução Industrial, processo de transformações sociais e econômicas ocorrido na Inglaterra do século 18.

“Isso significa que as tecnologias também são políticas, tem um propósito de acelerar e nos deixar dispensáveis. Não é algo natural, algo que vem espontaneamente”, afirma Fonseca. “E não é um problema da tecnologia enquanto técnica, é um problema político do uso das tecnologias que é determinado também pelo discurso permanente que diz que é inevitável, que a gente não pode ficar para trás e que quem não usa está por fora.”

No seu ponto de vista, o que faz com que a desigualdade cresça não são as ferramentas em si, mas o seu modelo de negócio. Ele destaca que a produção científica traz soluções para problemas sociais, como a fome, mas que esse não é um ponto de interesse das empresas.

“Não é necessário temer a tecnologia, mas é necessário regular. Uma regulação política, ou seja, o que a tecnologia pode fazer, é capaz de fazer, mas que é bom para a humanidade que ela faça? Se não for bom, é preciso regular e impedir que faça”, completa Fonseca.

PÚBLICO

Entre quem acompanhou as discussões estava a acadêmica de Jornalismo Karine Silva, 23. À FOLHA, ela destacou que a disseminação científica em um ambiente diversificado é importante, sobretudo para o público mais jovem. “Quebra um pouco de tabu trazer para um ambiente mais descontraído”.

Sobre a discussão relacionada ao trabalho, Silva acredita ser fundamental entender como ferramentas como a IA, por exemplo, funcionam e podem ser aplicadas. “Principalmente no mercado de trabalho, porque a gente trabalha e vê no dia a dia, tenta entender como funciona de verdade, e ter profissionais falando sobre isso é muito interessante”.

O engenheiro Rafael Silva, 41, não foi para o pub com o intuito de assistir às palestras, mas teve uma surpresa positiva com a discussão sobre tecnologia e trabalho. “É um tema bem importante, um tema curioso, acho que vale uma troca de conhecimento”, disse. “Eu trabalho com tecnologia, é a minha área fim.”

OBJETIVOS DO PINT OF SCIENCE

O coordenador geral do Pint of Science, Eduardo Inocente Jussiani, que é professor do Departamento de Física da UEL, destaca a importância do evento na área da divulgação científica, justamente por estar presente em vários países.

“A proposta é fazer divulgação científica, levar ciência para ambientes descontraídos como bares, restaurantes e cafés. A proposta acaba tendo dois lados: um é possibilitar que a sociedade tenha contato com os pesquisadores aqui de Londrina e, outro, propiciar que esses cientistas saiam dos laboratórios, do dia a dia de trabalho, e tenham essa oportunidade de conversar com a comunidade a respeito dos trabalhos que desenvolvem”, afirma.

No total, a edição deste ano do evento contou com nove palestras em Londrina, em temas que foram do uso de biogás e discussões sobre masculinidades, até o futuro do trabalho.

“Ainda é muito pouco comparado com a quantidade de trabalhos, de pesquisas que são desenvolvidas nas nossas instituições. É uma coisa absurda a quantidade de conhecimento que é gerado na UEL, na UTFPR e nas demais instituições da cidade”, diz o coordenador. “É um pequeno apanhado. Como diz em linguagem de boteco, é um pequeno ‘tira-gosto’ para que comunidade conheça o trabalho dos cientistas de Londrina.”