SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Benefícios previdenciários, programas assistenciais e despesas com servidores devem crescer acima da inflação em 2021 e ameaçam abrir buracos no teto de gastos do governo federal.

A IFI (Instituição Fiscal Independente), órgão do Senado, estima que haveria necessidade de cortes de despesas da ordem de R$ 20,4 bilhões, em relação ao projetado pelo governo, para que o teto fosse cumprido em 2021. Isso equivale a 80% dos investimentos previstos para o ano.

O Executivo terá ainda o desafio de acomodar sob o mesmo limite as despesas para manutenção da máquina pública, que serão reduzidas ao mínimo necessário para evitar uma paralisação, e o novo programa Renda Brasil, que nem está previsto no Orçamento do próximo ano.

Para especialistas em finanças públicas, apesar do alto risco de estouro do limite, não é impossível manter o teto em pé pelos próximos dois anos, mas ele não sobrevive até 2026, ano em que seu indicador poderá ser revisto, e será necessário adotar uma nova regra a partir de 2023.

Pela primeira vez desde a criação da regra do teto de gastos, o governo federal enviou uma proposta de Orçamento que não deixa margem para despesas acima das previstas para o próximo ano.

O projeto de Orçamento de 2021 do governo prevê um teto de R$ 1,485 trilhão, valor que representa a correção do limite de 2020 pela inflação acumulada em 12 meses até junho deste ano, de 2,13%. As despesas sujeitas ao teto devem crescer 2,33%, de acordo com a projeção do governo, também para R$ 1,485 trilhão.

Desde 2017, quando o teto foi implantado, o governo possuía alguma margem de manobra. Em 2020, a última avaliação do Orçamento apontou que as despesas neste ano devem ficar cerca de R$ 3 bilhões abaixo do teto.

O governo avalia que, no próximo ano, não haverá folga. Ou seja, qualquer gasto acima do estimado pelo Ministério da Economia pode levar ao estouro do limite ou ao chamado "shutdown", a paralisação da máquina pública.

Entre as pressões para o próximo ano estão benefícios previdenciários e gastos com servidores federais, que devem crescer mais de 4% (quase o dobro da inflação), considerando a diferença em relação à projeção mais recente do governo para 2020. O Benefício de Prestação Continuada para idosos pobres e deficientes deve crescer mais de 7%, mantendo o ritmo dos últimos anos. Essas três despesas representam 74% dos gastos sujeitos ao teto. Há também o risco de derrubada do veto presidencial que mantém e desoneração da folha para alguns setores, uma despesa de mais R$ 10 bilhões.

Outro problema são os gastos discricionários limitados pelo teto, que incluem os investimentos e despesas para a manutenção da máquina pública. Para se ajustar ao limite, essas despesas vão encolher quase 8% no próximo ano, para R$ 92 bilhões. A IFI estima que são necessários pelo menos R$ 90 bilhões para manter a máquina funcionando.

Ou seja, praticamente não há margem para aumento de investimentos ou para criação de um novo programa assistencial, como o Renda Brasil. O governo enviou um Orçamento que não prevê essa iniciativa, que visa substituir o Bolsa Família, uma despesa extra estimada em pelo menos R$ 30 bilhões.

"Não dá para cravar que o teto vai ser rompido, mas o risco é muito alto, é muito provável que seja", diz o diretor executivo da IFI, Felipe Salto.

"Qualquer projeção que o governo esteja mais otimista e que eventualmente gaste mais, Previdência, por exemplo, ele fura o teto", afirma.

A Constituição diz que o governo não pode enviar e o Congresso não pode aprovar um Orçamento que contemple o estouro e há dúvidas sobre o que deve ser feito ao se encostar no limite durante a execução: ultrapassá-lo, para que possa ser tomadas medidas especiais de corte de despesas, ou paralisar o funcionamento da máquina, e qual a punição nesses casos.

Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo no dia 4 de setembro, Salto e outros quatro especialistas afirmam que a sanção à previsão de despesas orçamentárias superiores ao teto de gastos não é a imputação de crime de responsabilidade do presidente, mas sim o conjunto de vedações previstas na própria regra do teto, os chamados "gatilhos". Eles proíbem reajustes de servidores, concursos públicos, criação de despesa obrigatória e novos subsídios e benefícios tributários, entre outras medidas.

"A gente vai para um quadro de risco alto de rompimento na execução do Orçamento ou então de 'shutdown'. Romper o teto faz parte da regra do jogo. Se o teto vai ser rompido, vamos acionar os gatilhos. Nesse meio tempo pode discutir uma mudança no indexador do teto, como estava previsto para 2026, no ano que vem", afirma Salto.

Em outro artigo, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, afirma que o descumprimento do teto para acionamento dos gatilhos não é a atitude correta para o momento, e implicaria sérios efeitos colaterais.

O diretor executivo da IFI não é o único a defender uma antecipação da revisão prevista na Constituição. Em 2019, os economistas Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco já haviam feito uma análise sobre as dificuldades para sustentar o teto e propuseram uma nova regra para vigorar a partir de 2021, com a possibilidade de aumento "moderado" acima da inflação, privilegiando o investimento público.

"A ideia básica se mantém. Por mais que a gente seja a favor do teto e ache que ele é importante, ele não dura até 2026. A ideia era dar uma saída organizada. É melhor deixar apertado em 2021 e 2022, para forçar alguma reforma, e ter a possibilidade de dar aumento real a partir de 2023", afirma Tinoco.

Ele mantém o diagnóstico de que o atraso nas reformas que visam controlar o gasto público, como a da Previdência, comprometeram a manutenção do limite atual. "A Previdência é quase metade da despesa.

Você fez uma boa reforma, diminuiu a taxa de crescimento, mas essa parcela do Orçamento vai continuar a crescer, o que significa que o restante terá de diminuir. E a discricionária já está em um nível mínimo."

Sobre os gatilhos, afirma ser difícil compensar por muitos anos um aumento real de cerca de R$ 14 bilhões na Previdência em cima de uma despesa com servidores na ativa de cerca de R$ 200 bilhões, embora isso possa ajudar.

Em evento promovido pela IFI na semana passada, Giambiagi, que é economista do BNDES, disse que acabar com o teto e não colocar nada no lugar seria uma medida suicida e que provocaria uma corrida especulativa, por isso é necessário iniciar a discussão sobre o que fazer a partir de 2023. Atualmente, o teto é a única das três grandes regras fiscais efetivamente cumprida, já que o governo não consegue fazer superávits e não cumpre a "Regra de Ouro".

"Não consigo pensar nos gatilhos como algo além de uma simples gambiarra para chegar até 2023. Não dá para ter gatilhos durante dez anos. Para 2021 e 2022, está longe de ser tranquilo, mas acho que ainda será possível cumprir."

No mesmo debate, Bráulio Borges, pesquisador do Ibre/FGV, afirmou que, para que o teto seja cumprido, dada que a despesa da Previdência em relação ao PIB não vai cair, todas as outras despesas têm de ir para um nível nunca visto desde a Constituição de 1988.

Segundo ele, a discricionária ficaria em R$ 40 bilhões em 2026, menos da metade do mínimo estimado para funcionamento da máquina.

Em publicação recente no Blog do Ibre, Borges cita documento do Ministério da Fazenda que traz uma projeção de despesas para o cumprimento da regra do teto com redução do investimento de 0,8% para 0,2% do PIB, de 2019 a 2026, com as despesas discricionárias passando de 2,3% para 1% do PIB, mesmo levando em conta a reforma previdenciária, o congelamento real do salário-mínimo e nominal do funcionalismo.

"A proposta do Giambiagi e do Guilherme é um ótimo ponto de partida para fazer essa discussão de aprimoramento do teto, com validade a partir de 2023. A gente não pode fingir que o atual teto de gastos vai se sustentar, mesmo com inúmeras reformas, até 2026", disse Borges.