SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Entre as 10 ocupações mais bem pagas no Brasil, 6 estão no setor público - 4 delas entre as "top 5".

No agregado de atividades de uma mesma área, a renda média de servidores praticamente empata com a de investidores e rentistas --e ganha dos empresários. Nesse quesito, 3 dos 5 maiores rendimentos médios são de funcionários do Estado.

Levantamento da FGV Social com base nas declarações do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) de 2018 revela a preponderância dos empregos públicos como os mais bem pagos do país.

Membros do Poder Judiciário, como ministros, desembargadores, juízes e procuradores, além de diplomatas, só perdem em remuneração para donos de cartórios, com renda média mensal acima de R$ 100 mil.

Os dados embasam a discussão sobre o peso da folha estatal diante da necessidade de controlar as contas públicas e ampliar a ajuda aos mais vulneráveis no pós-pandemia.

Segundo especialistas, a vantagem salarial e a estabilidade dos servidores tornam legítima a aplicação de mecanismos temporários de redução de carga horária e remuneração em caso de ameaça de descumprimento do chamado teto de gastos.

O mecanismo que limita a despesa ao Orçamento do ano anterior, corrigido pela inflação, originalmente previa a redução de 25% dos vencimentos e do trabalho de servidores, nas três esferas de governo, quando o gasto obrigatório ultrapassasse 95% da despesa.

Mas, por um erro do governo Michel Temer, os chamados gatilhos do teto não podem ser acionados; e demandam a aprovação de outra PEC (proposta de emenda Constitucional), o que requer 3/5 dos votos na Câmara e no Senado.

Apenas no plano federal, a redução na remuneração e na carga horária de servidores poderia abrir espaço anual de R$ 15 bilhões no Orçamento --valor equivalente a meio Bolsa Família.

No ano passado, governo federal, estados e municípios e seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário gastaram R$ 920 bilhões com pessoal.

"A pandemia abre uma oportunidade política, e com mérito, para mexer na folha do setor público. O problema é a ligação do presidente Jair Bolsonaro com essas as corporações", afirma o especialista em finanças públicas Manoel Pires, pesquisador associado do Ibre FGV.

Em 2019, apesar da intenção da equipe econômica, Bolsonaro recuou no envio de projeto de reforma administrativa ao Congresso. Mesmo a proposta de limitar a estabilidade só para futuros servidores foi abandonada.

Segundo a FGV Social, por causa dos funcionários públicos, a capital federal, onde Bolsonaro atua politicamente desde 1991, é a unidade da Federação com a maior renda média mensal do país (R$ 2.981, ante R$ 1.228).

Na chamada Classe A1 no país (renda domiciliar acima de R$ 16.019), os servidores são 14%, ante 4,2% dos empregados formais privados. Eles também trabalham menos, cerca de 7,3 horas diárias, ante 8,2 horas dos empregados formais privados, segundo dados de 2019 da PnadC (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua).

Durante a pandemia, enquanto o funcionalismo foi preservado, cerca de 14 milhões de brasileiros foram demitidos e mais de 16 milhões tiveram cortes de 25% nos salários.

Nesse cenário, a contenção das despesas com o funcionalismo (atrás somente da Previdência) é vista como uma das únicas alternativas, além do aumento da carga tributária, para o Brasil continuar cumprindo o teto de gastos até que o país consiga aprovar reformas que acelerem a economia.

Para o economista Armando Castelar Pinheiro, pesquisador do Ibre FGV, o momento é "dramático"; e os agentes econômicos só não cobraram um preço mais alto até agora (via queda da Bolsa, mais valorização do dólar e exigência por juros maiores para financiar o governo) porque há excesso de liquidez no cenário internacional.

"Mas o risco é absurdo", diz. Ele lembra que, a partir da instituição do teto, em dezembro de 2016, a despesa primária (sem contar juros) do governo central (União, INSS e Banco Central) cresceu apenas 1,2% ao ano em termos reais, ou 1/5 do que ocorria entre 1997 e 2014 (6,3% ao ano).

Foi isso o que permitiu a queda da taxa Selic de uma média de 14% em 2016 para 5,9% em 2019 e a diminuição do custo de rolagem da dívida pública. Hoje, a Selic está em 2% ao ano, com a inflação sob controle.

Mas, como mostrou a votação da semana passada no Senado que garantiu reajustes aos servidores em 2021, será muito difícil o caminho do corte de rendimentos e horas do funcionalismo --embora, um dia depois, a Câmara tenha derrubado a decisão.

Além de verificar o espaço orçamentário que a redução dos vencimentos dos servidores proporcionaria, economistas vêm analisando outros gastos estatais em busca de alternativas permanentes para a criação do chamado Renda Brasil, que o governo estuda para substituir o Bolsa Família.

Com a previsão de um valor médio de R$ 300 (maior que os R$ 190 atuais) e a incorporação de cerca de 7 milhões de famílias às 14 milhões hoje atendidas, o Renda Brasil poderá dobrar o custo do Bolsa Família, para cerca de R$ 60 bilhões anuais.

Para financiar o programa, o governo estuda extinguir o seguro-defeso (R$ 2,4 bilhões/ano, pagos a pescadores) e o abono salarial (R$ 18 bilhões/ano em um salário mínimo anual pago a quem ganha em média até dois pisos no mercado formal). Mas isso também requer a aprovação de uma PEC no Congresso.

Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), diz que há outras alternativas, como o reexame de R$ 26,9 bilhões oferecidos pelo governo anualmente em subsídios, como os créditos mais baratos para o setor agropecuário e linhas do BNDES.

Outra alternativa seria o desmonte de parte dos R$ 320 bilhões concedidos a dezenas de setores em benefícios fiscais.

Em sua primeira fase, a reforma tributária proposta pelo governo planeja eliminar quase R$ 70 bilhões desses benefícios, o que representa cerca de 1% do PIB.

O ministro Paulo Guedes (Economia) também persegue o que vem chamando de três "Ds", desindexação, desvinculação e desobrigação que existem hoje no Orçamento.

Com a inflação deste ano projetada em 1,67%, sua equipe tem a avaliação de que essa é uma chance histórica de desindexar, por exemplo, despesas vinculadas ao salário mínimo.

Hoje, 70% do Orçamento tem algum tipo de indexação. O fim do mecanismo, no primeiro ano, abriria espaço de R$ 16 bilhões na despesa.

Para Marcelo Neri, diretor do FGV Social, o governo criou uma espécie de "armadilha" para si com o auxílio emergencial mensal de R$ 600, que custa R$ 50 bilhões/mês e não se sustenta do ponto de vista das contas públicas.

Com base nos resultados do Datafolha, boa parte do aumento recente da popularidade de Bolsonaro, agora com 37% de ótimo/bom, tem relação com as 67 milhões de pessoas que passaram a receber a ajuda.

O fim do auxílio deverá ter impacto não só na popularidade do presidente como também sobre os mais vulneráveis, sobretudo informais e desempregados.

Segundo análise do economista do Insper Naercio Menezes, com base nas PnadC e na Pnad-Covid, ambas do IBGE, sem o auxílio emergencial, a taxa de pobreza entre os negros no país teria passado de 17% para 30% - mas o programa fez com que ela se estabilizasse em torno de 20%.

Entre os brancos, a pobreza teria mais do que dobrado sem o auxílio, passando de 7% para 16%, mas foi mantida em torno de 12% com o programa.

Mesmo com o auxílio, portanto, a pobreza hoje é maior do que antes da pandemia.

Para Neri, do FGV Social, uma das alternativas mais baratas seria o país adotar, passada a crise, um programa focalizado que trouxesse todos os 12% dos brasileiros (23 milhões) na pobreza para um patamar mínimo de renda mensal de R$ 250.