Mais de 200 municípios paranaenses têm menos de 10 mil habitantes, o mesmo número do complexo habitacional conhecido por Residencial Vista Bela, localizado 10 quilômetros a noroeste do centro de Londrina. São 2,7 mil casas e apartamentos espalhados por 31 quadras e 17 ruas em 63 hectares, área que apenas uma década atrás era destinada à produção agrícola.

Imagem ilustrativa da imagem Sem registro, empreendedores vão à luta no Vista Bela
| Foto: Roberto Custódio

Símbolo do alcance do Programa Minha Casa Minha Vida para a faixa de renda de até três salários mínimos, o bairro chega ao último ano da década na qual criado, sem grandes investimentos nos setores comercial e de serviços.

Para consumir no bairro, os moradores dependem em grande parte da iniciativa de empreendedores que também vieram de outras regiões da cidade e que enxergaram nas potencialidades de uma nova comunidade uma saída viável para o desafio de sobreviver em um país que há seis anos oscila entre a recessão e o baixo crescimento econômico.

As iniciativas não se concentram em nenhuma região ou via específica. São espalhadas no bairro, em construções improvisadas, quase sempre à margem dos regramentos urbano, tributário e trabalhista. São também intuitivos, distante do mundo de consultorias, treinamentos e pesquisas de mercado.

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| Foto: Roberto Custódio

Devanil Gregório Leite, o Neguinho, é um dos exemplos de homem de negócio bem sucedido no Vista Bela. Tem vários pequenos pontos de venda, de cardápio variado. Mas o principal dele é a Pizzaria Vista Bela, que emprega dez pessoas, metade para o serviço de entrega. São 100 a 150 pizzas por dia, o que explica a tranquilidade e a popularidade, observadas quando o empreendedor percorre as ruas de moto sob acenos e saudações.

“Sempre ajudo na divulgação de eventos aqui sem cobrar nada. Quando a gente entrega a pizza, o panfleto vai junto. Todo mundo se ajuda aqui”, explica Devanil.

A única pizzaria do bairro tem sete anos e se consolidou a partir de uma lacuna “porque as pizzarias localizadas em outros bairros demoravam muito para entregar ou não entregavam”. O faro para expansão e para investir na loja começou quando Neguinho montou um quiosque e começou a vender o produto com uma inesperada facilidade.

A ideia de ter o próprio negócio surgiu quando ele era pizzaiolo no bairro onde morava, o Jardim União da Vitória, na zona sul. “Aprendi com meu ex-patrão que o mais difícil para um negócio é criar a clientela. Atender bem no início, ganhar a confiança. Depois disso, é só continuar trabalhando direitinho que não tem erro”, ensina.

O Guedes Mercado também ganhou espaço pelo pioneirismo. “Quando chegamos aqui praticamente não havia nada no bairro, apenas uma parte dos moradores”. A proprietária Elaine Ferreira Cubas Guedes conta que o pequeno supermercado começou como uma mercearia, com a venda de produtos de gêneros básicos, uma iniciativa do sogro que já tinha um empreendimento semelhante no Jardim União da Vitória. Ser o primeiro foi fundamental para o faturamento ganhar tração e a mercearia dar lugar ao mais conhecido ponto de varejo local. A loja conta hoje com 14 funcionários e é uma referência para o consumo das famílias, com um número de itens nas prateleiras que surpreende pela abrangência. Segue com planos de expansão.

Ronaldo Alves Pereira de Souza, 34 anos, morador de oito anos no bairro (é oriundo do Conjunto Maria Cecília, na zona norte), trabalhava com confecção e lembra que quando chegou ao bairro pensou que não suportaria a sensação de isolamento que o abateu nos primeiros meses. “Tinha uma imagem muito ruim porque as pessoas falavam mal daqui e isso acabou me influenciando. Mas aos poucos fui me adaptando e percebendo que aqui é um bom lugar para viver”.

A prova de confiança no bairro ele deu ao gastar suas economias em um projeto que surgiu quando ele ainda se sentia um forasteiro. Ele e os amigos perceberam que tinham que sair do bairro até para fazer um pequeno reparo no smartphone e a ideia foi praticamente instantânea. Abriu um pequeno varejo no qual oferece acessórios para celular e outros artigos eletrônicos, além, é claro, de consertar aparelhos. “Sou o único que faço este tipo de serviço aqui e meus clientes sempre me agradecem por isso, por não ter que deixar o bairro para resolver seu problema”.

Trabalho por conta própria está no ‘DNA’ do bairro

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| Foto: Roberto Custódio

Os casos bem sucedidos no bairro serviram como lição para muitos moradores, que passaram a ter uma esperança concreta de ganhar a vida por conta própria. Ao lado de uma placa onde se lê “Vende-se marmitex” e onde Franciele Tavares da Cunha, uma jovem dona de casa se divide entre a atenção às panelas e ao atendimento aos clientes afirma que “não tem tempo de dar entrevistas”, Lucas de Paula, 25 anos, espera com paciência a chance de faturar mais alguns trocados. Ele veio de uma invasão no Jardim Interlagos (zona sul) e tenta se sustentar com uma pequena borracharia, onde ao lado do primo atende principalmente os motociclistas do bairro. Ele ainda aguarda o crescimento do negócio, mas parece satisfeito com as perspectivas de crescimento. Há nove anos no bairro, ele está plenamente adaptado e convicto de que seu futuro está na comunidade. “As pessoas gostam daqui porque o bairro foi se estruturando e hoje é bom de viver”.

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| Foto: Roberto Custódio

A confeiteira Daniele Pereira de Oliveira Azevedo está no bairro há cinco anos, oriunda do Conjunto Farid Libus, na zona norte. Neste início de ano, decidiu arrendar um ponto comercial do bairro para ter uma renda extra ou, quem sabe, ser sua principal ocupação no futuro. A ideia é fazer vingar um salão de beleza, no qual ela faria a função de manicure enquanto a sócia fizesse o trabalho que cabeleireira. Com a clientela ainda em formação, ela aproveitava a manhã que a reportagem visitou o bairro para fazer uma faxina caprichada no local. “Estou fazendo a divulgação na minha igreja e acredito que vou conseguir ganhar um dinheirinho”.

O presidente da Associação dos Amigos e Moradores do Residencial Vista Bela, o autônomo José Silvestre Gonçalves, 62 anos, ex-morador do Morro do Carrapato (zona leste), lembra que trabalhar por conta própria sempre foi uma característica dos moradores do bairro, onde vive há oito anos. “No início, a maioria das famílias vivia da reciclagem. Com o tempo, a falta de comércio no bairro foi vista como oportunidade para muita gente. Tudo o que era necessário para viver, tinha que ser comprado em outro bairro. Isso torna a vida das pessoas muito difícil. Então, as pessoas foram se virando e instalando pontos informais de venda. Acredito que o caminho aqui é a prefeitura fazer um trabalho de formalização destes negócios. Não tem outro jeito”, analisa.

Os obstáculos da formalização

As regras do Programa Minha Casa Minha Vida impedem o uso dos imóveis como ponto comercial (ver texto nesta página), o que explica a opção pelo empreendedorismo informal no Vista Bela. A restrição acabou por “turbinar” o comércio em um loteamento que surgiu após a ocupação do conjunto, o Jardim Padovani. Os moradores, entretanto, reclamam da distância e dos preços salgados, explicados por eles pela falta de concorrência. A Cohab Londrina, responsável pelo cadastramento das famílias e pelo gerenciamento da construção e da ocupação do bairro, não quis comentar a falta de áreas reservadas para comércio no Residencial e suas consequências.

O secretário municipal de Fazenda, João Carlos Barbosa Perez informou à reportagem que o órgão estuda como fazer um esforço de formalização na área, respeitando as regras do programa habitacional da Caixa e já sob a legislação revisada do Plano Diretor, assunto que ainda está em discussão na Câmara. A ideia é, no futuro, promover palestras no bairro e demonstrar a facilidade de se tornar um microempreendedor individual, condição que, apesar de criar o ônus da tributação, pode se tornar vantajoso com o acesso ao crédito.

A importância da cumplicidade e os perigos do fiado

O empreendedorismo intuitivo, opção de sobrevivência para quem não enxerga mais oportunidades reais no seu horizonte profissional, domina as comunidades pobres de todas as regiões do País. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de domicílio Contínua do IBGE, no fim de 2019, a massa de informais - soma dos trabalhadores sem carteira assinada, trabalhadores domésticos sem carteira, empregador sem CNPJ, conta própria sem CNPJ e trabalhador familiar auxiliar - atingiu 41,1% da população ocupada, ou mais de 38 milhões de brasileiros. No Paraná, a participação dos informais é de 34,3%.

O escritório do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas ainda não realizou estudos específicos sobre a situação do Vista Bela, tampouco sobre o peso da informalidade em Londrina.

O consultor André Araújo de Azevedo acredita que em comunidades pobres e populosas há setores com grande potencial de expansão, como o comércio de alimentos e serviços ligados ao transporte e à saúde, as demandas mais urgentes do consumidor de renda mais baixa “Em pequenos negócios de bairro, o empreendedor depende ainda mais do envolvimento com o cliente, saber das suas necessidades específicas dele, tentar suprir suas necessidades e ganhá-lo pela cumplicidade, como é comum nas pequenas cidades”.

Azevedo alerta que o pequeno empreendedor informal também deve se preocupar em aprimorar o feeling para abrir crédito para os clientes. Como muitas vezes o fiado é inevitável, é preciso redobrar a atenção em relação ao volume deste tipo de venda. “Mesmo de forma empírica, a percepção é importante. Tem que haver um equilíbrio entre o esforço de se relacionar bem com o cliente e a segurança do seu negócio”, sugere.

Uso misto é permitido, mas com ressalvas

A Caixa, responsável pelo programa Minha Casa Minha Vida, esclarece através de nota que é permitida a utilização simultânea do imóvel como moradia e para “pequenas atividades comerciais”, com a condição que a função principal seja a primeira. “Eventuais denúncias de uso indevido de unidade habitacional são apuradas e, caso confirmadas, podem resultar em sanção ao beneficiário, de acordo com as regras do programa”, informa o banco.

A nota lembra ainda que cabe ao poder público municipal dispor de “legislação pertinente, de forma a atender as demandas da sociedade na localidade, em especial aquelas relativas às atividades comerciais”.