Alguns setores produtivos, como o do leite, começaram a se mobilizar contra a proposta
Alguns setores produtivos, como o do leite, começaram a se mobilizar contra a proposta | Foto: iStock

A proposta do governo federal de revisar a isenção tributária de parte dos itens que compõem a cesta básica preocupa alguns setores produtivos, como o de leite e derivados. No final de setembro, o Ministério da Economia anunciou que estuda reonerar produtos como alguns tipos de queijos, iogurtes e carnes consideradas nobres sob a justificativa de que a medida evitaria a concessão do benefício a famílias de alta renda. Com o aumento da arrecadação, afirma o governo, haveria mais recursos para serem direcionados ao programa Bolsa Família.

A redução da alíquota dos impostos federais que incidem sobre produtos da cesta básica passou a valer em março de 2013, no governo da então presidente Dilma Rousseff. Em tese, com a desoneração, os preços das mercadorias deveriam cair, aumentando o poder de compra dos consumidores, especialmente os de baixa renda.

A queda das taxas do PIS e Cofins foi determinada por meio de medida provisória e a do IPI, por meio de um decreto. Para os 16 itens da cesta básica fechada, as alíquotas dos três impostos federais foram zeradas. Para os produtos em separado, houve a redução dos impostos. Com a medida, o governo passaria a abrir mão de R$ 7,3 bilhões ao ano, sendo R$ 6,8 bilhões correspondentes ao PIS e Cofins e R$ 572 milhões referentes ao IPI.

No mês passado, ao anunciar a intenção de aumentar os tributos de alguns produtos da cesta básica, o Ministério da Economia informou que a desoneração consumiu R$ 15,9 bilhões em 2018, mas que desse montante apenas R$ 1,6 bilhão foi gasto com os 20% mais pobres do País. Os 20% mais ricos ficaram com R$ 4,5 bilhões do benefício. Pelas contas do governo, com a reoneração seria possível pagar R$ 6,81 a mais por mês a cada uma das 13,8 milhões de famílias assistidas pelo Bolsa Família e a proposta teria potencial para retirar 117 mil pessoas da pobreza.

icon-aspas "É um cálculo muito errado que o governo está fazendo"

O Boletim Mensal sobre os Subsídios da União, documento no qual consta a sugestão de revisão tributária, propõe reonerar queijos, iogurtes light e diet, leite condensado, creme de leite, capuccino em pó solúvel, filés de alguns tipos de peixe, incluindo salmão, carnes de peru e pato e até ovo de jacaré. A desoneração desses itens, destacou o governo, tem um custo anual de R$ 1,17 bilhão ao País.

A reportagem entrou em contato com o Ministério da Economia e a Receita Federal para obter mais detalhes sobre a proposta e as alíquotas que iriam incidir sobre os produtos da cesta básica após a revisão, mas foi informada de que o governo federal não irá se manifestar sobre o assunto.

INSATISFAÇÃO

Logo após o anúncio do governo, alguns setores produtivos começaram a se mobilizar contra a proposta. O setor de leite, por exemplo, cobra a bancada ruralista do Paraná na Câmara Federal para que se manifeste contrariamente à medida de reoneração tributária. "É um cálculo muito errado que o governo está fazendo, é de uma ignorância terrível", disse o presidente da Cativa, Paulo Maciel. "O governo vai tirar das empresas e, consequentemente, vai fazer as empresas de lácteos repassarem para a fatia que consome mais leite, que são as classes C e D. Essas vão ser as mais prejudicadas. As classes A e B vão continuar consumindo", avaliou.

A alta dos impostos dos itens considerados supérfluos, afirmou Maciel, não terá reflexo apenas nos preços dos produtos consumidos em maior quantidade pela população mais abastada. "Se aumentar os impostos dos produtos que as classes A e B consomem, como queijo e leite em pó, vamos ter que repassar o que vamos pagar de impostos a mais para os produtos utilizados pelos mais pobres, como o leite longa vida, por exemplo. Se não repassarmos, não vamos pagar o produtor", explicou ele, que prevê a redução do consumo e a desmotivação do setor caso o governo leve adiante o projeto de reoneração da cesta básica.

icon-aspas "A entrada de leite vindo do Uruguai e da Argentina é uma deslealdade porque os custos para os produtores brasileiros são bem maiores"

Em um momento em que a possibilidade de acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia traz insegurança para o mercado interno, especialmente ao setor de leite, medidas como a reoneração da cesta básica podem desestabilizar ainda mais os setores produtivos, segundo o presidente da Cativa. "Os produtos lácteos vêm passando por um momento difícil desde o ano passado. A entrada de leite vindo do Uruguai e da Argentina é uma deslealdade porque os custos para os produtores brasileiros são bem maiores. E muitos países que competem com o Brasil têm subsídio do governo", declarou Maciel.

No último dia 30 de setembro, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou a PPM (Pesquisa da Pecuária Municipal), confirmando que o Paraná passou de terceiro para segundo maior produtor de leite do País, com 4,4 bilhões de litros produzidos em 2018. A liderança segue com Minas Gerais, onde a produção no ano passado cresceu 1%, chegando a 8,9 bilhões de litros. O Rio Grande do Sul é o terceiro maior produtor, com 4,2 bilhões de litros de leite produzidos no último ano.

Segundo o Deral (Departamento de Economia Rural), órgão da Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento, o ganho em produtividade foi possível graças ao investimento dos grandes produtores em alta tecnologia. Mas o aumento do custo de produção tem afastado pequenos produtores desse setor.

ESTRUTURA TRIBUTÁRIA

É inquestionável a necessidade de uma revisão no sistema de cobrança de impostos do País, mas as propostas apresentadas pelo governo não alteram a estrutura tributária, afirmou o economista e técnico do Dieese no Paraná (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) Fabiano Camargo da Silva. "As propostas que o governo tem colocado no Congresso são propostas que vão continuar tributando em muito o consumo, a produção, e muito pouco a renda e o patrimônio", avaliou.

icon-aspas "O nosso sistema tributário deveria reduzir as desigualdades"

O sistema de tributação brasileiro é concentrado em tributos regressivos e indiretos. Mais da metade da arrecadação provém de impostos que incidem sobre bens e serviços enquanto é pequena a cobrança de taxas sobre renda e patrimônio, como ocorre nos países mais desenvolvidos, onde dois terços da arrecadação incidem sobre recursos obtidos com heranças, grandes fortunas, aplicações financeiras, lucros e dividendos, segundo informações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

No Brasil, o sistema tributário reduz o poder de compra dos mais pobres. "O nosso sistema tributário deveria reduzir as desigualdades", defendeu Silva. "No momento de crise e com essas questões tributárias, (a reoneração de impostos) pode ter um efeito direto no consumo e também na produção. As pessoas compram menos, vai no sentido contrário e pode agravar ainda mais a situação."

IMUNIDADE

A intenção do governo federal de tirar dos mais ricos para beneficiar os mais pobres não funciona porque, neste caso, o consumidor da cesta básica será prejudicado, na opinião do presidente executivo do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação), João Eloi Olenike. “Entendemos que o ideal seria aplicar a imunidade tributária aos produtos alimentícios considerados essenciais, proibindo a cobrança de impostos sobre eles”, defendeu o tributarista.

Olenike vê um erro na formatação da cesta básica ao permitir que produtos como filé de salmão fossem incluídos na lista de itens essenciais. Para ele, a cesta básica deve ser constituída por produtos simples e básicos para a população. “Os produtos têm que ser graduados de acordo com a essencialidade. Quanto mais essencial, menor a tributação. Isso é um princípio constitucional.”

A reoneração proposta pelo Ministério da Economia, analisou Olenike, pode fazer com que os produtores repassem o aumento ao consumidor final, pressionando para cima o preço da cesta básica.

Um levantamento feito pelo IBPT apontou que a média de tributação dos itens da cesta básica é de 22% no Paraná. “Em muitos países, não há tributação sobre itens de alimentação. Aqui, quem ganha menos paga igual pelo mesmo item que o rico, o que gera proporcionalmente mais regressividade na tributação do consumo”, comparou Olenike.