Recuperação Judicial e Direito do Consumidor
Há tempos tem sido delicada a relação entre a recuperação judicial e o direito do consumidor
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 09 de fevereiro de 2023
Há tempos tem sido delicada a relação entre a recuperação judicial e o direito do consumidor
Bruno Ponich Ruzon
Há tempos tem sido delicada a relação entre a recuperação judicial e o direito do consumidor.
Em nosso sistema jurídico a recuperação judicial é regida pela Lei 11.101/2005. Trata-se de um importante instituto voltado à concretização da função social da empresa. Embora a nossa economia seja de livre mercado, o nosso modelo político-jurídico, formatado pela Constituição Federal de 1988, tem a função social como um norte fundamental, que incide em diferentes institutos, na propriedade, nos contratos e também nas empresas. Goste ou não, a função social da propriedade convive ao lado da livre concorrência em nosso sistema jurídico (art. 170, III e IV, CF), e a construção de uma sociedade solidária é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, I, CF). Por isso deve-se utilizar ferramentas para preservar uma empresa, fazendo com que ela continue produzindo, empregando pessoas e pagando tributos.
Ocorre que do lado da função social da propriedade e da livre concorrência encontra-se também a defesa do consumidor (art. 170, III, IV e V, CF). Aliás, a proteção do consumidor é um direito fundamental em nosso sistema (art. 5º, XXXII, CF). Logo, e esta é uma premissa essencial, a preservação da empresa não se encontra em um patamar superior à proteção do consumidor. Por isso, ao menos em tese, a recuperação judicial não poderia ser aplicada ignorando-se a peculiar situação do consumidor. Mas não é isso o que acontece.
Isto porque a Lei 11.101/2005 não contém qualquer dispositivo versando sobre os direitos dos consumidores. Conquanto ela preveja proteções para os empregados e até mesmo para as instituições financeiras, a classe dos consumidores inexiste no texto da referida lei. De fato, os créditos dos consumidores são tratados como meros créditos quirografários e, portanto, recebem a exata mesma disciplina de créditos comuns.
O problema é que na recuperação judicial a empresa apresenta um plano de recuperação (art. 53, Lei 11.101/2005) e muitas vezes prevê um desconto em suas dívidas de mais de 75%. Sim, isto mesmo que você leu. A empresa ingressa com a recuperação judicial e propõe pagar apenas 25% de suas dívidas, aí incluído o que deve a consumidores. E, pasmem, juízes e promotores não têm visto qualquer abuso nesta postura. Não é o espaço aqui para abordar os vários defeitos técnicos deste tipo de “recuperação judicial”, e como as empresas utilizam o legítimo direito à recuperação para prejudicar credores, sobretudo consumidores.
Aqui é importante evidenciar que este tipo de resultado é fruto de uma equivocada visão sistêmica do direito, que coloca a recuperação judicial acima de tudo, inclusive de outros valores, princípios e regras que têm o mesmo grau, ou até uma maior magnitude em nosso sistema jurídico. É obvio que uma recuperação judicial que prevê um deságio de 75% ou até mesmo de 90% dos créditos dos consumidores conflita totalmente com o disposto nos artigos 5º, XXXII, 170, V, da Constituição Federal, e 6º, VI, da Lei 8.078/90, e é lamentável saber que alguns magistrados têm chancelado o abuso.
Enfim, colocamos os holofotes no problema, esta situação não pode se perpetuar, faz-se necessário encontrar soluções para que os consumidores parem de ser severamente e injustamente prejudicados em recuperações judiciais.
Bruno Ponich Ruzon – Advogado e membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB Londrina

