Imagem ilustrativa da imagem Pandemia força saída de mulheres do mercado de trabalho
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A atendente Rita de Cássia trabalhava em uma lanchonete até o início do ano passado. Mas com a chegada da pandemia do novo coronavírus e com as medidas de restrição das atividades comerciais, o patrão propôs um acordo e ela deixou o emprego. “A loja havia inaugurado há pouco tempo e o público, que era grande, caiu pela metade porque passou a atender só para delivery. Meu patrão disse que não teria como pagar todo mundo e saímos eu e mais duas pessoas”, contou.

Sem emprego e com cinco filhos, três deles em idade escolar, Rita de Cássia passou a viver apenas com a renda do bolsa-família, de pouco mais de R$ 400 mensais, e enfrentou alguns apertos financeiros nos últimos meses. Para reforçar o orçamento, fazia diárias como atendente auxiliar em um restaurante, das 6 às 16 horas, mas metade dos R$ 80 que recebia por jornada era destinada ao pagamento de uma pessoa que cuidava dos seus filhos enquanto ela estava no trabalho, já que as creches e escolas deixaram de funcionar. “Eu saía de casa às 5h20 e chegava por volta das 17 horas. Não era justo pagar menos do que isso para a menina que cuidava dos meus filhos.”

Agora, Rita de Cássia tenta voltar ao mercado de trabalho, mas percebeu a redução das vagas disponíveis e um aumento do número de candidatos. No momento, a atendente sonha em conseguir uma das 200 vagas ofertadas por uma rede de supermercados. Ela passou pelo processo seletivo com outras mil pessoas e está esperançosa.

A realidade de Rita de Cássia reflete com perfeição os dados levantados no estudo Mulheres no Mercado de Trabalho no 3º Trimestre de 2020, feito por economistas do NPEGen (Núcleo de Pesquisas de Economia e Gênero) da Facamp (Faculdades de Campinas) com base em dados da PNAD/IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua). O estudo forma um retrato da sobrecarga feminina, da maior perda de postos de trabalho pelas mulheres e da dificuldade de retornar ao mercado de trabalho em meio à pandemia.

Segundo o IBGE, 49,5% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres que, muitas vezes, dependem de uma rede de apoio para poderem se manter no emprego. Em uma situação de normalidade, exercer a função de mãe, dona de casa e profissional já requer das mulheres um enorme esforço. Além das inúmeras tarefas diárias, a desigualdade de gênero estrutural impõe a elas salários mais baixos que os homens e vagas menos qualificadas. Em meio a uma crise, como a que o País atravessa atualmente em razão da pandemia, as desvantagens para as mulheres se acentuam e são elas as primeiras a perderem ou deixarem o emprego.

“Nós já temos uma situação muito debilitada no mercado de trabalho porque fica para as mulheres, estruturalmente, a responsabilidade pelo trabalho da reprodução da vida humana que se encontra dentro de casa, o trabalho doméstico, um trabalho invisível que exige das mulheres um esforço físico e mental imenso e que não tem nenhuma remuneração”, destacou uma das autoras do estudo, a professora de Economia da Facamp e pesquisadora do NPEGen, Daniela Gorayeb.

"A questão de gênero, a desigualdade, não é só no mercado de trabalho. É algo estrutural do País e a pandemia aprofundou ainda mais as desigualdades existentes. Já tem uma situação econômica e social do País onde as mulheres estão inseridas no mercado de trabalho de forma precária e vulnerável historicamente, que as exclui das melhores ocupações", avaliou o técnico do Dieese-PR, Fabiano Camargo da Silva.

No estudo, as pesquisadoras identificaram uma enorme discrepância entre a quantidade de homens e de mulheres que declararam ao IBGE a impossibilidade de trabalhar por causa das atividades domésticas. Para elas, o principal motivo para estarem fora do mercado de trabalho é o “cuidar dos afazeres domésticos” (26,3%). Os demais motivos são: “muito idoso ou muito jovem” (21,8%); “outro motivo” (18,4%). A principal razão de afastamento citada pelas mulheres é a última apontada pelos homens. Apenas 1,8% deles respondeu que os afazeres domésticos os impedem de ingressar no mercado de trabalho. Para o público masculino, “outro motivo” aparece em primeiro lugar, com 26,2% das respostas, seguido por “muito idoso ou muito jovem” (25,3%), “problemas de saúde” (18,1%), “estudar” (18,0%) e “não quer trabalhar” (10,7%).

As pesquisadoras observaram que o número de homens que alegam não poder trabalhar por causa dos afazeres domésticos vem diminuindo trimestre a trimestre, baixando de 552 mil para 524 mil no segundo trimestre, e chegando a 497 mil homens no terceiro trimestre de 2020. As mulheres nessa condição somaram mais de 13 milhões.

Auxílio emergencial reduziria vulnerabilidade, diz economista

Embora não tenha chegado a toda a população, o auxílio emergencial pago pelo governo federal permitiu que houvesse o recolhimento da população e das mulheres que precisavam fazer o trabalho doméstico durante a pandemia, mas o fim do auxílio, disse a economista Daniela Gorayeb, significa que essa saída provisória do mercado de trabalho não acontecerá mais.

Desde o começo do ano passado, nove milhões de pessoas haviam deixado o mercado de trabalho e o terceiro trimestre da PNAD mostra um pequeno retorno, mas muito revelador. Retornaram 418 mil pessoas, sendo 380 mil homens e apenas 37 mil mulheres. "Está muito longe de recuperar as ocupações perdidas na pandemia e, quando retorna, a maioria das vagas é para os homens. Em função da própria questão dos afazeres domésticos, elas têm maior dificuldade de procurar emprego", salientou o técnico do Dieese-PR, Fabiano Camargo da Silva.

Gorayeb alerta ainda para o risco de subnotificação. Sem o retorno das vagas de emprego, as mulheres vão retornar como desempregadas ou executando bicos. A metodologia utilizada pelo IBGE considera atividade remunerada qualquer ocupação, mesmo que seja desempenhada apenas uma vez por semana, pelo período de uma hora. “Neste ano, devemos ter um contingente enorme de mulheres procurando trabalho, realizando uma subocupação ou trabalhando por conta própria. Vai aumentar ainda mais o grau de informalidade e de precariedade do trabalho das mulheres.”

Nessa escala de trabalhadores com ocupações de menor renda e precárias se encontram mais mulheres que homens e, em último lugar, a mulher negra. Durante a pandemia, foi observada uma maior variação no mercado de trabalho menos qualificado. O trabalho doméstico, segmento dominado pelas mulheres, com milhões de trabalhadoras no País, que representam 8,6% das mulheres ocupadas, já registra a falta de demanda. Entre 2019 e 2020, 1,6 milhão de vagas de emprego doméstico para mulheres deixaram de existir.

“Além de as mulheres ficarem em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica gigantesca, ficam também os seus dependentes. A dramaticidade vai além da mulher e avança sobre as crianças”, destacou Gorayeb. Evitar uma situação de fragilidade não apenas econômica, mas também social, aponta a economista, depende de políticas públicas e a volta do auxílio emergencial seria uma delas. “Cuidar da vida das mulheres é cuidar de uma população muito mais ampla e o nosso futuro como sociedade precisa desse cuidado imediato. A situação nunca esteve tão dramática para as mulheres. Isso significa que uma parte da população brasileira nunca esteve tão ruim.”

"O governo cortou o auxílio emergencial, mas a economia não voltou ao patamar anterior à crise. A situação do mercado de trabalho não retomou. A crise continua e isso está impactando a situação de um modo geral e, principalmente, as mulheres. Neste início de ano, pode ter uma situação ainda mais grave do ponto de vista econômico e social", disse Silva.