Quase um século atrás, quando um grupo de investidores ingleses começou a percorrer os estados de São Paulo e Paraná para entender como poderia ganhar dinheiro no Hemisfério Sul, não existia nenhum ponto do mapa com a palavra Londrina.

A imensidão de terra vermelha a oeste do Tibagi e ao norte do Trópico de Capricórnio nutria apenas uma infinidade de palmitos, figueiras e perobas, a plateia altiva dos cursos de água de todos os volumes, em todas as direções, corredeiras que faziam a vida se esparramar secretamente pelo planalto baixo, sem registro, distante das luzes da civilização.

O cenário mudou com a velocidade febril do século XX.

Quinze anos depois da fundação da Companhia de Terras Norte do Paraná e pouco mais de uma década depois da chegada da primeira expedição, o censo de 1940 já apontava que naquelas mesmas terras havia surgido uma aglomeração de 75 mil habitantes, o que dava a Londrina a condição de segundo município mais populoso do interior do Paraná, abaixo apenas de Guarapuava, na época um imenso território que monopolizava a face oeste do Estado.

O sucesso instantâneo do modelo de colonização da companhia, como contam os livros, está relacionado a um projeto imobiliário inovador, vendido com muita propaganda no mundo inteiro, a partir de promessa de documentação garantida (o que reduziria muito os habituais conflitos pela posse, comum à época em outras regiões desbravadas), de pequenos lotes, do pagamento facilitado e da garantia de posse definitiva em quatro anos.

Londrina se tornou um exemplo de ocupação agrária organizada pela iniciativa privada, uma comunidade internacional de adesão espontânea, o pólo mais bem sucedido daquela colonização que transformaria o Paraná para sempre.

Protagonista deste início estonteante, a cafeicultura era a impressão digital que acompanhava a assinatura de Londrina e sua saga vencedora.

Sinônimo de progresso acelerado, de eldorado sem limites, de novo destino preferido da marcha brasileira rumo ao interior, a terra sem passado desfrutava o presente sem muita preocupação com o futuro, um enigma praticamente esclarecido, com tanto dinheiro e tanta gente chegando.

Havia a certeza em forma de placa na entrada do fervilhante núcleo urbano, um aviso aos forasteiros: ali se localizava a Capital Mundial do Café.

As décadas se passaram, o título ufanista caiu no esquecimento e a metrópole regional contemporânea tem que parar para pensar o que se tornou e como é vista agora.

As provocações para esta reflexão acontecem o tempo todo. Em fevereiro, por exemplo, a divulgação de uma preliminar do Censo do IBGE, apontava que o município teria uma população em 2023 abaixo das projeções, uma realidade que fere o orgulho de um lugar conhecido por seu crescimento constante e vertiginoso.

Entre 1940 e 1980, período que abriga o ápice do ciclo da economia cafeeira, Londrina multiplicou quatro vezes o número de habitantes. Nos 40 anos seguintes, a população nem sequer dobrou.

No lugar do café e sua vocação para atrair gente, Londrina tem apostado nas heranças do seu milagre para permanecer sob os holofotes.

Mas quais seriam tais heranças? O que estes 130 quilômetros quadrados de galpões, avenidas, condomínios, shoppings e milhares de casas dialogam com as batidas firmes dos machados na selva ou com o ruído sincopado dos grãos presos no sobe-e-desce das peneiras nas fazendas?

Para comemorar seus 30 anos, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ippul) realizou uma sondagem, divulgada em março. Uma outra provocação em meio a uma suposta crise de identidade.

Na pesquisa feita nos canais online da prefeitura, um seleto grupo de londrinenses com alta escolarização (87% com ensino superior completo e 56% com pós-graduação) resumiu da seguinte maneira a cidade.

O termo de referência mais lembrado pelos 665 participantes foi pé-vermelho (41,9%), pouco mais de um terço escolheram Pequena Londres (35,4%) e apenas 6,76% cravaram Capital do Café.

Imagem ilustrativa da imagem Modernidade desafia resiliência do café como marca de Londrina
| Foto: Anderson Coelho/iStock

Londrina estaria perdendo sua conexão com o passado glorioso?

“Há tempos, as pesquisas anuais de percepção do Fórum Desenvolve Londrina registram que três atributos identificam a fase atual: a vocação de acolher, o espírito inovador e as riquezas ambientais. A sondagem confirmou isso. E como marca e identidade, o pé vermelho está consolidado. Nesta perspectiva, o café já saiu de cena faz algum tempo. Contudo, não há porque rejeitar esta identidade, que está espalhada por vários elementos da cidade”, pondera o presidente do Ippul, Tadeu Felismino.

Para o professor Leandro Henrique Magalhães, um estudioso do patrimônio cultural e da economia criativa que presidiu o Fórum Desenvolve Londrina até o fim do mês passado, o café segue sendo uma marca importante, ainda que os elementos contemporâneos ganhem espaço no processo de amadurecimento.

“O café continua no nosso imaginário porque ele vai além do aspecto econômico. Ele ajuda a entender o que nós somos. Porém, há outros marcos identitários, que se relacionam com ele. O pé vermelho, por exemplo, resume a riqueza que vem da terra, o que não deixa de ser uma referência indireta ao café. Outra é a arquitetura modernista, que foi concebida com o desenvolvimento econômico daquela época. Citaria ainda a diversidade étnica como elemento forte desta identidade. A cidade começou como uma colônia internacional, com mais de 40 etnias atraídas pelo café”, explica Magalhães. “Esta diversidade exigiu estratégias de convivência, a se relacionar com o diferente, enfim, a saber acolher”.

Tanto Felismino como Magalhães lembram que a importância do café está de certa forma protegida e eternizada em elementos cotidianos e importantes para os moradores, como o Cine Teatro Ouro Verde, o Catuaí Shopping, a rama do café no escudo do Londrina Esporte Clube, a Rodovia do Café. “Está no nosso DNA”, resume Magalhães.

“O café é pra sempre porque se conecta com o modelo de colonização não-patrimonialista dos ingleses. Nosso DNA está nesta inovação. A colonização do Norte do Paraná é um modelo novo de ocupação no Brasil. A terra é dividida em pequenos lotes, as cidades são planejadas”, defende Bernardo Pelegrini, secretário municipal de Cultura. “E foi um dos casos mais bem sucedidos do império inglês, que não fez isso em nenhuma colônia. Deu muito certo também porque os imigrantes que já estavam há um tempo no Brasil, já tinham se capitalizado, já queriam ser proprietários de terra e o Norte do Paraná atraiu muitos deles”, completa.

Pelegrini lembra que a cidade deu suas cabeçadas na transição para o modelo atual do agronegócio e que a nova matriz econômica não gerou outro ícone que rivalizasse com a cafeicultura. “Ninguém idolatra a soja e o milho”, brinca.

A força excepcional do café no imaginário do povo advém não só da sua capacidade de sustentar famílias e esparramar riqueza no campo e na cidade como também por sua presença física impressionante, como lembra o engenheiro agrônomo Florindo Dalberto, ex-funcionário do Instituto Brasileiro do Café (IBC) e ex-presidente do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), ambos extintos.

“O Paraná ostentou a maior área contínua de uma cultura que o mundo já viu. Eram 1,8 milhão hectares tomados pelas lavouras de café, com Londrina sendo o epicentro desta imensidão de 200 municípios. Muitas vezes vi negociantes estrangeiros abismados com o tamanho daquilo”, explica Dalberto.

“Todo mundo que viveu aquele período é profundamente marcado por todo este universo, pela imagem das floradas, pelo barulho do beneficiamento do grão varando as madrugadas. Foi um período curto do ponto de vista histórico, mas muito, muito intenso”.

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| Foto: Gustavo Carneiro

‘Café deve vencer a luta contra o esquecimento’

O agrônomo Florindo Dalberto aposta que o café vai ganhar sua luta contra o esquecimento e justifica. “Tem muita gente escrevendo sobre aquele período, com vários tipos de abordagem, tanto técnicas quanto socioeconômicas. Além disso, o brasileiro está cada vez mais estudando e apreciando café, com vários produtores paranaenses buscando produzir para um mercado gourmet de enorme potencial. Isso vai construir uma ponte entre o passado e o presente, até para finalidades turísticas”, prevê.

De alguma forma, a identidade contemporânea, investigada ano a ano pelas pesquisas de percepção do Fórum Desenvolve Londrina, renova os velhos sonhos.

Mostram que os elementos da odisséia da colonização e do boom cafeeiro, o tal período curto e intenso, ainda definem a alma da cidade.

O pé vermelho da relação com a terra, a valorização da riqueza ambiental que remete aos fundos de vale e aos cursos de água que eram refúgio em qualquer fazenda, a qualidade de vida que os desbravadores sonhavam, o fascínio pelo novo, pela construção de um lugar conectado com a modernidade e com o futuro, o orgulho de viver em uma terra que desafia e recompensa.

“O café é uma marca, uma ideia telúrica, expressada na pesquisa do Ippul na preferência pela expressão pé vermelho. Não é algo que é necessariamente histórico ou cultural, mas é uma identificação enraizada”, lembra o professor de História Rogério Ivano, que lembra que o município está prestes a ganhar o Museu do Café, um espaço que deve evidenciar a relação da origem da cidade ao hábito universal de se consumir a bebida no século XX.

“Por outro lado, a identidade é algo afetivo e não deve necessariamente orientar o que a cidade quer para o futuro”, observa. “A pesquisa do Ippul está correta em estimular a ideia da diversidade, uma característica sociocultural importante e necessária para a manutenção da Londrina que a gente conhece. Ser aberta às ideias progressistas, às vanguardas, ser aberta à recepção das novidades, características que marcaram por muito tempo a vida da cidade”.

Imagem ilustrativa da imagem Modernidade desafia resiliência do café como marca de Londrina
| Foto: Gustavo Pereira Padial