Na atualidade, assiste-se a um crescente e lastimável protagonismo do Poder Judiciário como um todo, e, em particular, do Supremo Tribunal Federal. Os motivos para tal fenômeno – chamado “ativismo judicial” - são vários, complexos, diferentes, e escapam ao contexto desta sumária digressão.

Ao que consta, a origem do ativismo judicial enquanto interpretação criativa remonta ao século XIX (1803), caso Marbury v. Madison, nos EUA. Posteriormente, o termo “judicial ativism” apareceu em artigo publicado por Arthur Schlesinger, em 1947. Todavia, em 1921, Edouard Lambert analisou o fenômeno na obra “O governo dos juízes e a luta contra a legislação social nos EUA”. Como se vê, a construção teórica em apreço é própria do sistema anglo-saxônico (common law), baseado no costume e na jurisprudência, no precedente judicial, e não do sistema romano-germânico (civil law), lastreado na lei escrita. É relevante assinalar que isso tem dado lugar à importação acrítica ou equivocada de engenhocas e teorias de interpretação jurídica.

No que concerne propriamente à matéria, surge em primeiro lugar a judicialização exagerada de conflitos, que tem marcado a sociedade altamente relativizada deste século, dominada pela técnica, informática e comunicação. Assim, questões de toda índole (política, social, moral, religiosa, jurídica etc.) são preferencialmente objeto de resolução pelo Judiciário, em detrimento de outros poderes, originariamente competentes. Em seguida, emerge o ativismo judicial revelador de particular forma de atuação do Poder Judiciário, extremamente proativa, expansiva e, em geral, antidemocrática, haja vista que viola tanto a separação de poderes e a soberania popular como a segurança jurídica, pilares essenciais do Estado democrático de Direito. Tal maneira de agir se torna mais gravosa, abusiva e nefasta aos direitos fundamentais e à garantia jurídica quando versa matéria penal, tendo em vista a especial natureza dos bens jurídicos protegidos.

A argumentação em prol dessa construção, onde o juiz aparece dotado de poderes quase ilimitados, não passa na maioria das vezes de tão somente doxa (não episteme, como já ensinava Platão), sob variada e sofística carapaça, com fundamentação de ordem sobretudo política, ideológica, social, moralista, religiosa, messiânica, igualitária, solidária etc. O embasamento das decisões costuma ser deveras retórico, vago e difuso. Busca-se criar direito inexistente, e para tanto se substitui ao legislador, inclusive o constituinte originário. Como justificativa, não se leva em conta a Constituição e a lei como balizas necessárias e limites ao poder de julgar. Ao contrário, baseia-se apenas na vontade pessoal, mascarada por longas, prolixas e dialéticas locuções, sempre em defesa das minorias, dos menos favorecidos, das transformações sociais e históricas, da omissão ou mora legislativa, dos movimentos sociais, da ordem econômica e financeira, da vontade do povo, do clamor das ruas, et alii. Nesse modo de proceder, afasta-se a racionalidade inerente ao ordenamento jurídico, especialmente constitucional, o que leva à falta de estabilidade nas relações de direito, característica de operação de outro teor, que não jurídica stricto sensu. O que quase não sói emergir é a robustez do império do Estado de Direito e o respeito à democracia representativa, ambos frutos de árdua e longa conquista.

Aliás, faz-se arbitrariamente política criminal punitiva - inclusive via argumento analógico in malam partem - em substituição ao Poder competente, e ao arrepio da Constituição (art.5º, XXXIX) e da lei penal (art.1º, CP) – exemplos: criminalização de conduta homo fóbica como racista (ADO 26) ou na criminalização do não recolhimento intencional do ICMS (RHC 163.334). Parece que nada mais escapa aos tentáculos da “ponderação”, que serve de engodo subjetivo, político ideológico, praticamente ilimitado, que a tudo envolve e absorve - até mesmo a legalidade dos delitos e das penas, pedra angular do regime democrático em todo mundo. Diz-se que necessário em nome da “pós-modernidade”, do “progressismo”, do multiculturalismo, do “igualitarismo” etc. Em resposta, basta lembrar a lição – atualíssima - de 1984, G. Orwell. Nada mais.

Não se está a sustentar as ideias da Escola da Exegese tampouco da Escola do Direito Livre, mas sim a interpretação verdadeira, certa e objetiva, segundo os ditames constitucionais, e dentro dos marcos legais próprios ao Estado democrático de Direito. Por isso, a interpretação do Direito, mormente no âmbito penal, tem (e deve ter sempre) contornos legais mais estritos e inarredáveis, sob pena de se vulnerar a própria essência democrática (U. Eco – I limiti dell’interpretazione).

O ativismo judicial penal, além de inconstitucional e ilegal, é intensamente nocivo e perigoso, absolutamente ilegítimo, e deve ser evitado sempre que exista verdadeira democracia constitucional. Não se pode olvidar que todos os poderes da República devem prestar contas ao povo, verdadeiro e único soberano. Daí as palavras de De Gaulle: “a melhor Corte Suprema é o povo”!

Regis Prado e Diego Prezzi são juristas