A alta repentina dos preços dos insumos, o aumento no consumo de EPIs e a queda na receita provocada pela suspensão de serviços em razão da pandemia do novo coronavírus obrigaram as unidades de saúde a fazerem malabarismos orçamentários para conseguir equilibrar as contas nos últimos meses. Entre março e maio, com a alta da demanda e a escassez de produtos no mercado, fornecedores reajustaram os preços em até quatro dígitos, chegando a 9.000% de aumento em alguns casos. Quando possível, gestores de clínicas e hospitais reajustaram os valores dos procedimentos para reduzir o deficit, mas a medida só tem efeito para atendimentos particulares já que o SUS e os convênios não revisaram suas tabelas de preços.

Imagem ilustrativa da imagem Estabelecimentos de saúde tentam equilibrar contas em meio à pandemia
| Foto: FolhaArte

O maior aumento observado foi no preço da máscara tripla, segundo informações repassadas pelos hospitais e clínicas médicas consultados pela reportagem. As altas do equipamento de proteção variaram de 581% a 9.000%. Antes da pandemia, o Hospital do Coração pagava R$ 0,10 por máscara. Com o reajuste aplicado nos meses mais críticos, o item chegou a custar R$ 9 a unidade. A máscara N95 subiu de R$ 1,82 para R$ 56 cada uma, aumento de 3.077%. O avental descartável, que custava R$0,98, passou para R$ 8, alta de 816%.

“Estamos em fase de análise de dados para constatarmos o índice real de aumento de custos, pois além dos grandes reajustes dos insumos, muitos deles passaram a ser mais utilizados, em razão 80% superior a fevereiro. É o caso dos equipamentos de proteção individual fornecidos para profissionais, pacientes e acompanhantes”, disse o Hospital do Coração por meio de sua assessoria de imprensa. Ao mesmo tempo, a queda no volume de pacientes chegou a 50% em março e abril e agora estabilizou-se em 30%.

Hospitais também ressaltam os reajustes nos preços de medicamentos de amplo uso, com margens superiores a 100%. Levantamento do Hospital do Coração apontou reajustes entre 245% e 915% no preço dos fármacos. O frasco do antibiótico azitromicina subiu 321%, passando de R$ 28 para R$ 90. O omeprazol, utilizado para problemas estomacais, subiu 488% e o sedativo midazolam, 915%.

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| Foto: Silvio Avila/AFP

Anestésicos e relaxantes musculares usados para pacientes do centro cirúrgico e da UTI sofreram aumento médio de 100% a 300%, segundo balanço feito pelo Hospital Araucária. “Os fornecedores justificam que os laboratórios não estão recebendo matéria-prima para realizar a produção. Quando encontramos, compramos a qualquer preço para não faltar no atendimento de nossos pacientes”, ressaltou a administradora da instituição, Ana Paula Guidorizi Gazzoni.

Sócio-proprietário do Centro de Oncologia e Radioterapia de Londrina, o médico oncologista Cássio José de Abreu calcula em pelo menos 30% o aumento dos custos da clínica, mas segundo ele, não foi possível repassar esses custos aos pacientes. “Um grande número de pacientes que faz o tratamento é de convênio e o preço não tem como repassar. Tivemos que absorver esses custos, não só de EPIs. Fizemos a testagem dos funcionários com suspeita de Covid-19 e a empresa tem que arcar com esses custos. Não só do funcionário com suspeita, mas de todo o grupo”, explicou o médico. Cada exame custa entre R$ 300 e R$ 350.

Para reduzir os efeitos da crise sanitária nas contas da clínica, disse Abreu, foi preciso racionalizar despesas e restringir as horas extras dos trabalhadores, mas com os ajustes adequados, foi possível manter o quadro de funcionários e os salários em dia.

No Hospital Araucária, os materiais e medicamentos representavam entre 10% e 11% do total dos custos da instituição e hoje, esse percentual subiu para 15%. “Isso nos afeta muito, pois tivemos uma queda de 18% nos nossos atendimentos, portanto queda em nossa receita. Além disso, nossos contratos com convênios são corrigidos apenas após 12 meses e não recebemos cobertura pelos valores pagos a mais nos itens que sofreram reajuste. O hospital acaba arcando com o prejuízo”, destacou Gazzoni, que calcula em 25% a queda na receita ocasionada pela redução no número de atendimentos.

Na Santa Casa de Londrina, só em EPIs, os gastos cresceram 940% na comparação com o período anterior à pandemia. Somados às altas com medicamentos, materiais e laboratórios, o custo por paciente/dia internado na instituição cresceu 68%. “É um gasto grande. Em alguns produtos, houve um aumento substancial. Agora os preços estão se estabilizando”, disse o superintendente do hospital, Fahd Haddad. “Não somos referência à Covid-19, mas estamos trabalhando como se fosse para dar segurança aos funcionários e aos outros pacientes”

Sem as cirurgias eletivas, suspensas durante a pandemia, os recursos para pagamento dos custos fixos caíram, enquanto o número de atendimentos pelo SUS cresceu. “Caiu (a receita) o convênio e aumentou muito o SUS, que já é deficitário. O SUS paga apenas 60% do atendimento, os outros 40% vêm de outras fontes”, ressaltou Haddad. “Se continuar com a suspensão de cirurgias eletivas, distanciamento social e hospitais só focados em Covid-19, vai continuar o deficit e a situação é muito preocupante. Recorremos a financiamentos.”

Um estudo preliminar do Honpar (Hospital Norte do Paraná), em Arapongas, apontou a alta dos custos por paciente/dia. Enquanto os custos de manutenção dos pacientes aumentaram, o número de internamentos reduziu em razão do redimensionamento de leitos e redução das cirurgias eletivas. Na instituição, os gastos com gases, como oxigênio e ar medicinal, lavanderia e manejo do lixo hospitalar representaram alta de mais de 20%.

Idec aponta problema regulatório no controle de preços

Quando começou a pandemia do novo coronavírus no Brasil, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) recebeu inúmeras reclamações relacionadas ao aumento de preços de produtos na ponta da cadeia de consumo, como álcool em gel e EPIs. Para evitar o aumento descontrolado de preços, o instituto oficiou o MPF (Ministério Público Federal) e os ministérios públicos estaduais para que verificassem as denúncias. O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) também abriu investigação na cadeia de saúde por preço abusivo.

“Temos um problema regulatório no mercado de medicamento que não consegue evitar a alta abusiva e o resto do mercado não tem uma regulação que evite o aumento”, disse a coordenadora do Programa de Saúde do Idec, Ana Carolina Navarrete.

A curto prazo, lembrou ela, o monitoramento e a aplicação de penalidades têm sido feitos pelo Procon, embora os órgãos de defesa do consumidor não tenham a incumbência de fiscalizar o meio da cadeia, onde estão os hospitais. Essa fiscalização caberia ao Cade. “A ação do Cade está começando. Está na fase em que solicitou informações de muitas empresas, desde plano de saúde até hospital e distribuidora de medicamentos, e está compilando o aumento de preços”, disse a coordenadora.

Navarrete esclareceu que embora clínicas e hospitais não possam recorrer ao Procon, o Ministério Público e o Cade são caminhos possíveis para receberem as denúncias dos gestores dos estabelecimentos de saúde que se sentirem lesados.

Por parte do governo federal, há algumas iniciativas, como a Camed (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), mas as respostas são demoradas. “A nossa avaliação geral é que o Brasil foi pego totalmente despreparado para lidar com a escassez (de insumos da saúde) e a alta de preços. A gente entrou com representação no MPF contra o governo federal por ausência de coordenação. Em alguns momentos, os aumentos de preços podem ser considerados oportunismo, mas em alguns casos o problema é estrutural, por falta de organização”, avaliou Navarrete.