Todos os dias, as cerca de 370 toneladas de lixo orgânico descartadas pelos quase 600 mil londrinenses têm como destino final a CTR (Central de Tratamento de Resíduos). O aterro sanitário é responsável pelo manejo correto do material orgânico produzido nos domicílios, mas poderia ir muito além na sua funcionalidade, transformando um passivo ambiental em fonte de receita para o município.

Da decomposição de todo o resíduo depositado nas células do aterro é possível extrair biogás e biometano, combustíveis naturais e renováveis de grande potencial energético e valor econômico. A captação desses dois gases ainda contribuiria para reduzir as emissões de metano na atmosfera, o mais nocivo entre os GEEs (Gases de Efeito Estufa), responsáveis pelo aquecimento global. O metano chega a ser 80% mais poluente do que o gás carbônico.

Segundo estimativa feita pela Abiogás (Associação Brasileira do Biogás e do Biometano) a pedido da FOLHA, das 370 toneladas diárias de lixo descartadas no aterro poderiam ser extraídos 20.252,15 Nm3 (normal metro cúbico) de biogás ou 11.138,68 Nm3 de biometano. Com esse volume de biometano seria possível abastecer 55 caminhões, inclusive os veículos utilizados no serviço de coleta de lixo, por exemplo, seguindo os preceitos da economia circular, que é descarbonizar a economia e encontrar novas formas de reaproveitamento máximo dos resíduos.

Desde 1970, a extração de recursos naturais mais do que triplicou no mundo, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas). Em 50 anos, houve um aumento de 45% no uso de combustíveis fósseis. Até 2060, estima-se que as emissões de GEEs podem crescer em 43%.

Metade do total global de emissões de GEEs é proveniente da extração e do processamento de materiais, combustíveis e alimentos. Essas atividades também respondem por mais de 90% da perda de biodiversidade e estresse hídrico, com implicações diretas no aquecimento global.

Duplo benefício

“A recuperação de biogás de aterro é uma ação que gera duplo benefício. Aproveita economicamente uma coisa que estava sendo desperdiçada, gerando insumo energético, e reduz a emissão de metano na atmosfera”, destacou Flávio Ribeiro, embaixador do Movimento Circular, consultor e professor de economia circular, logística reversa e regulação ambiental empresarial. O Movimento Circular é um ecossistema colaborativo que atua desde 2020 no incentivo à transição da economia linear para a circular.

Nos aterros sanitários, as várias camadas de material orgânico são cobertas com terra e a ação das bactérias responsáveis pela decomposição dos resíduos resulta em uma mistura de gás carbônico com metano, o biogás.

É o mesmo processo visto na natureza para gerar o gás natural, mas em vez de milhões de anos, é possível obter o combustível em algumas semanas e sem a necessidade de perfurar poços.

No aterro, são instalados vários pontos de captação do biogás, que vai para um duto que conduz o combustível até a planta de onde será extraído o biometano, que é o biogás purificado.

No Brasil, com um sério problema de desmatamento e o sistema de transporte muito dependente do óleo diesel, a extração de biogás e biometano surge como uma solução mais fácil, rápida e barata. “Talvez não seja o que vai resolver nosso problema de mudanças climáticas, mas é uma contribuição muito importante, percentualmente, e que consegue resolver com ganho econômico”, ressaltou Ribeiro.

No caso específico da extração do biogás nos aterros sanitários, disse o professor, é uma forma de tirar “um pouco de valor” de uma atividade de alto custo para os municípios. Em Londrina, a coleta de lixo, incluindo orgânicos, recicláveis e a manutenção da CTR, tem um custo anual de R$ 66,623 milhões aos cofres públicos. “A gente tem a coleta seletiva, o trabalho dos catadores e toda a reciclagem que já cuida da fração seca. O Brasil está começando a acordar agora para um outro mundo que é o do resíduo orgânico. Quando a gente tem um gerenciamento de resíduos em uma cidade, precisa pensar na economia circular, em aproveitar o máximo”, salientou Ribeiro, lembrando que quase a metade dos resíduos gerados nas cidades brasileiras é orgânica.

Lei do Combustível do Futuro

Os municípios estão começando a olhar para essa matemática com mais cuidado. Um incentivo para que invistam na construção de estruturas para a extração de biometano pode vir da lei federal 14.993, sancionada em 2024. Chamada de Lei do Combustível do Futuro, o texto estabelece diretrizes para que o Brasil se torne referência na produção de biocombustíveis.

Dentre as diretrizes, a lei determina que a partir de 1º de janeiro de 2026, o setor de gás natural deverá adicionar 1% de biometano ao gás produzido ou importado. Percentual que irá aumentar de forma gradativa até atingir 10%.

“A Petrobras já está começando a fazer leilões para comprar biometano. Há políticas públicas do governo federal favorecendo isso. É uma fonte de receita que pode crescer muito”, destacou Ribeiro. “A recuperação de biogás é, hoje, o que foi a reciclagem no Brasil há 30 anos”, comparou.

Realidade em Londrina

Londrina está atrasada nesse projeto. Embora há mais de dez anos a cidade discuta a importância, a necessidade e a viabilidade dessa iniciativa, nada até o momento saiu do campo das ideias.

Agora, a atual administração afirma que será diferente. “Pretendemos retomar os estudos de utilização energética do nosso aterro. Ele tem um potencial grande para isso. Estamos buscando parcerias e alternativas para encontrar viabilidade”, disse o diretor de Transportes e diretor interino de Operações da CMTU (Companhia Municipal de Trânsito e Urbanização), Fernando Augusto Porfirio.

“Um aterro com capacidade de produção de 11 mil Nm3 já tem viabilidade para extrair o biometano. E com a Lei do Combustível do Futuro, é um bom momento para começar a pensar nessa possibilidade”, avaliou a presidente executiva da Abiogás, Renata Isfer.

Isfer ressaltou ainda os benefícios fiscais que podem ser concedidos por iniciativas como essa, como a redução do ICMS para produção e comercialização do biogás e biometano, descontos no IPVA para quem troca a frota por veículos movidos a biometano e as discussões, com o Ministério do Trabalho, sobre a possibilidade de isenção do pedágio por um ano para empresas que substituem o diesel por biometano para abastecer as suas frotas de veículos.

Um levantamento feito pela Abiogás mostra que até 2023, o Brasil contabilizava 12 plantas instaladas para produção de biometano e 35 em processo de autorização, sendo 23 destas para autoconsumo.

Entre as 12 já implementadas, seis tinham como insumos resíduos sólidos urbanos depositados em aterros sanitários, cinco utilizavam resíduos resultantes de atividades agrossilvipastoris e uma, de co-digestão, que utiliza dois ou mais insumos.

Em número bem maior eram as plantas para extração de biogás que, em 2023, somavam 1.365, sendo cerca de 400 no Paraná.

‘Pré-sal caipira’, a energia que vem do agro

Entre as 12 plantas para extração de biometano existentes no país até 2023, apontou levantamento da Abiogás (Associação Brasileira de Biogás e Biometano), apenas uma ficava no Paraná. Instalada no município de Tamboara (Noroeste), a estrutura utiliza como matéria-prima produtos e resíduos orgânicos resultantes da atividade agrossilvipastoril.

O Paraná tem um grande potencial energético em biogás e a maior fonte não seriam as atividades de saneamento, mas os resíduos produzidos pelo setor sucroenergético e os resultantes da atividade agrícola e da produção de proteína animal. É o chamado "pré-sal caipira".

A Abiogás estima que a cada ano, no Paraná, os resíduos da produção de proteína animal poderiam gerar 1,6 bilhão de Nm3 de biogás, o setor sucroenergético teria potencial para produzir 1,1 bilhão de Nm3, a produção agrícola, 1 bilhão de Nm3, e as atividades de saneamento, 104,9 milhões de Nm3.

Em equivalência energética, o potencial de geração de energia elétrica a partir do biogás é de 15.147 Gwh (Gigawatts/hora) ao ano e 3,6 bilhões de litros de óleo diesel poderiam ser substituídos pelo biometano.

“O mundo do agro tem um potencial gigantesco. Há um monte de resíduos, como palha, caroço, folha seca, dejetos da criação de porcos, de boi, tudo isso degradando ao ar livre”, disse o embaixador do Movimento Circular, Flávio Ribeiro.

Olhar para a parte orgânica do lixo e direcionar o foco à produção de biometano é um processo mais trabalhoso e seria preciso criar uma nova cultura do valor dos resíduos orgânicos. Mas a possibilidade de juntar a questão ambiental com a questão econômica tem impulsionado os negócios desse setor porque é uma forma de propiciar o crescimento e o desenvolvimento econômico sem aumentar a extração de recursos naturais. “O Brasil vai ser uma nova Arábia Saudita em termos de energia”, aponta Ribeiro.

No Paraná, o governo estadual assinou, no último mês de fevereiro, protocolos para uso de biogás e biometano no transporte rodoviário. A principal ação é o Corredores Rodoviários Sustentáveis do Paraná, projeto que prevê a utilização do biometano como combustível complementar ao uso de gás natural na movimentação da frota rodoviária diretamente ligada ao campo.

O biometano para abastecer os veículos será obtido a partir do aproveitamento de dejetos e resíduos agroindustriais. O projeto deverá incluir 4.586 quilômetros de estradas, cruzando 147 municípios, inicialmente. A expectativa é de que ainda neste ano a rota Maringá-Paranaguá entre em operação.

A Compagas, que em 2024 teve renovado por 30 anos o contrato de concessão de distribuição de gás canalizado no Estado, tem o papel de facilitadora nesse processo.

Hoje, a companhia distribui gás natural e sobre a perspectiva de a empresa começar a distribuir biometano, ainda não há nada definido. O CEO da Compagas, Eudis Furtado, afirma que a empresa tem interesse em dar suporte para o avanço de projetos de produção de biometano no Estado, possibilitando que esse gás seja colocado no mercado de forma competitiva.

“Seria um projeto inovador, mas há etapas a serem vencidas. Como esse gás vai chegar até a rede da Compagas, os estudos de qualidade do produto, então ainda é um projeto no estágio inicial", declarou Furtado.

mockup