BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Ex-corregedora nacional de Justiça (2010-2012), que se notabilizou por fazer investigações financeiras sobre os pares, a ministra aposentada Eliana Calmon, 75, diz ser necessária nova reforma do Judiciário que mexa não só na estrutura administrativa, mas em temas como o disciplinar.

Ela defende a revisão da Loman (Lei orgânica da Magistratura), mas se diz cética a respeito. A iniciativa cabe ao presidente do Supremo, Luiz Fux.

"Como ele é magistrado de carreira, é muito, muito corporativista, e isso atrapalha muito", comenta, acrescentando que foi do ministro a decisão provisória que, na prática, manteve por anos o pagamento irrestrito de auxílio-moradia aos juízes. "Deu uma liminar e sentou em cima."

PERGUNTA - Deve haver uma reforma também para a magistratura?

ELIANA CALMON - É primordial para a reforma do Judiciário uma nova Loman. Houve uma reforma em 2004 que mexeu constitucionalmente em algumas coisas. Mas a estrutura maior tem a ver com a Loman. A Loman tem a ver com a parte administrativa do Judiciário. É anterior à Constituição de 1988, quando o Estado era bem diferente.

Seria uma reforma apenas administrativa ou também em outros aspectos?

EC - Mexeria em outros aspectos, como a parte disciplinar, as diversas categorias de magistrados, a infraestrutura para exercer suas atividades. Isso tudo tem implicações com a administração, de forma que eu acho que deveríamos ter a reforma do Judiciário. Depois de 16 anos, está na hora de modernizar mais o Poder.

A sra defende acabar com a aposentadoria compulsória como penalidade?

Sim. Você faz uma aposentadoria compulsória e premia, muitas vezes, um magistrado que cometeu uma gravíssima infração. Como corregedora, tive um magistrado que cometeu uma falta. Mandei uma equipe lá no Maranhão e ele mandou dizer: "Estou louco que ela me aposente. Porque aí eu deixo isso aqui, não preciso mais trabalhar, estou ganhando meu dinheiro".

E o que a senhora fez?

Nada. Não aposentei. Abri o processo, ele ficou respondendo.

O governo diz que não pode propor uma reforma que atinja magistrados. Essa posição é adequada?

É, essa reforma tem de partir do próprio Judiciário e quem propõe é o STF. Como [com a] a Loman, que ele é que propõe reformar.

A Constituição não diz claramente, mas a independência dos Poderes faz com que o Executivo não possa interferir na estrutura do Judiciário.

Ante a situação fiscal do país e a ampla revisão de direitos proposta pelo Executivo, a sra. acha que a situação cria um ambiente para que o presidente do STF apresente uma reforma para a magistratura?

Acho difícil. Defendo muito o ministro Fux. Acho que será uma administração melhor do que foi a do ministro [Dias] Toffoli, porque Toffoli é muito político e Fux, muito institucional. Mas, como é magistrado de carreira, é muito, muito corporativista, e isso atrapalha.

Até hoje não se reformou a Loman, atingindo os magistrados. Tem vários projetos tramitando há tempo e o Supremo não quer mexer. E fica essa aberração, porque temos uma lei antiga e defasada.

O que a sra. considera aberração na lei?

A parte disciplinar, acho terrível. Também esses penduricalhos, as vantagens pecuniárias para juiz, precisam ser revistos. Toda hora tem um penduricalho para magistrado. A lei deixa em aberto para que isso possa ser mexido por decisão do próprio Supremo. Tem de fechar mais.

O magistrado tinha de ganhar bem. Não é ficar dando auxílio. Isso não é possível.

Agora mesmo o ministro Toffoli saiu [da presidência do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça], deu não sei quantas vantagens para a magistratura. Acho um absurdo.

Fux, por muito tempo, manteve uma liminar que assegurou pagamento de auxílio-moradia para magistrados. Como a sra. viu isso?

Quando, na Justiça Federal, os magistrados requereram auxílio-moradia, estudei a lei e meu voto foi contrário . Quando veio essa discussão no STF, sabia tudo. Tanto que ele [Fux] não teve como julgar. Deu uma liminar e sentou em cima. Se fosse para a lei mesmo, ia perder.

Magistrado não tinha como ter auxílio-moradia, e sentou na liminar e levou anos essa liminar produzindo efeitos [de 2014 a 2018]. Isso foi uma posição corporativista.

Como os juízes reagiriam a uma eventual reforma?

Muito mal. O magistrado não está acostumado a perder nada, só acrescenta. Eles alegam que têm garantia de irredutibilidade de vencimentos. Mas quando falamos da garantia, é dos vencimentos, não dos penduricalhos.

E melhorou muito. Magistrado não pagava Imposto de Renda. Foi uma guerra para o clube da toga pagar IR como qualquer cidadão brasileiro.

O que a sra. considera um penduricalho clássico?

Auxílio-escola, auxílio-paletó, auxílio-alimentação. [Há] Várias indenizações. Por exemplo: férias de 60 dias. Ninguém tem férias de 60 dias. Por que? "Ah, trabalha muito, fica muito cansado". Mas depois se permite que vendam 10 dias de férias. Se são consideradas necessárias pela legislação para o trabalhador, não pode vender 10 dias de férias quem tem 60.

Os juízes ganham muito no Brasil?

Ganham muito bem. O que eu acho um pouco injusto é que tiraram a promoção por antiguidade. Um juiz jovem, com 25 anos, ganha quase igual a um juiz com muitos anos de magistratura, porque não há mais os quinquênios. Aquilo estabelecia um ganho adicional por tempo de serviço, o que eu acho que é um critério objetivo e que desiguala.

Seria melhor que a promoção estivesse associada a desempenho?

Já foi pensado, mas é muito difícil. Toda vez que você trabalha com categorias que têm uma atividade mais intelectual, em que não se tem controle, você não pode avaliar pelo número de processos. Existem processos muito cabulosos, muito difíceis, e processos mais fáceis.

Ganhar bem é ganhar no limite do teto atual ou o subsídio teria de ser maior?

Não acho errado estabelecer como parâmetro o teto do STF. E, dentro dos padrões salariais brasileiros, e da situação do país, acho que eles ganham bem.

Quando você fala em ganhar bem, também fala na segurança. Um ministro do Supremo é vitalício.

Como anda o CNJ na fiscalização de abusos nas remunerações?

O CNJ foi um grande órgão. Foi criado para fazer essa fiscalização. Nos primeiros anos, estava se organizando. Não deu muita importância à questão disciplinar. Isso veio a partir da administração do ministro Gilson Dipp, corregedor de 2008 a 2010. Foi o primeiro que começou a funcionar na parte disciplinar. Segui as pegadas do Dipp. O ministro que me seguiu, [Francisco] Falcão, também continuou. Mas isso desagradou extremamente a magistratura.

Houve embates com as associações de classe.

Botei o Coaf [o extinto Conselho de Controle de Atividades Financeiras] para funcionar dentro da magistratura. Quis submeter os magistrados a uma fiscalização financeira, fazendo investigação quando entendia que havia patrimônio a descoberto.

Isso começou a desagradar. Isso tudo começou a ser minado e hoje não se faz. [A corregedoria] esvaziou-se.

Qual é a sua remuneração como magistrada aposentada?

Líquido, R$ 23,5 mil. No contracheque, R$ 37,3 mil é o bruto. Mas tenho um desconto de R$ 13,7 mil.