Conflitos no campo crescem 8% no primeiro semestre de 2023
Disputas por terra e trabalho escravo rural lideram as ocorrências, segundo aponta relatório da Comissão Pastoral da Terra
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 12 de outubro de 2023
Disputas por terra e trabalho escravo rural lideram as ocorrências, segundo aponta relatório da Comissão Pastoral da Terra
Simoni Saris - Grupo Folha
Os conflitos no campo cresceram 8% no país no primeiro semestre de 2023 em relação ao mesmo período do ano passado. De janeiro a junho, foram registradas 973 ocorrências, o segundo maior número observado em dez anos, atrás apenas dos seis primeiros meses de 2020, com 1.007 casos. Os dados foram divulgados nesta terça-feira (10) pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) a partir da coleta e organização feita pelo Cedoc (Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno).
As disputas por terra são a maior causa dos conflitos, com 791 registros, o que representa 81% do total. Em seguida, vêm o trabalho escravo rural (102) e os conflitos pela água (80). Pistolagem, grilagem e invasão são os principais crimes cometidos contra a ocupação e a posse de terras, e o relatório apontou alta nas ocorrências dessa natureza. Nos primeiros seis meses de 2023, foram registrados 143 casos de pistolagem, 85 de grilagem e houve 185 registros de invasões.
O número de famílias envolvidas chegou a 101.984, somando quase 527 mil pessoas, uma queda de 2% ante 2022 e que pode ser explicada pela pequena redução de conflitos em terras indígenas, onde as famílias costumam ser mais numerosas.
A CPT apurou ainda as consequências dos conflitos na vida dos povos do campo, das águas e das florestas. No período analisado, 878 tiveram suas casas destruídas, 1.524 perderam suas plantações e 2.909, os seus pertences. As famílias expulsas somaram 554 e 1.091 foram despejadas judicialmente, ficando sem acesso a espaços coletivos, como roçados e áreas de extrativismo vegetal. Entre os fatores que geram os conflitos, o relatório aponta a contaminação por agrotóxicos, a mineração e as usinas hidrelétricas.
VIOLÊNCIA
Quando analisada a violência praticada contra a pessoa, houve aumento expressivo no número de vítimas, subindo de 418 no primeiro semestre de 2022 para 779 no mesmo período de 2023.
O relatório revela ainda um ambiente hostil para as mulheres. Os casos de violência praticados contra elas passaram de 94, em 2022, para 107 neste ano. Desde 2021, esse gráfico mostra uma curva ascendente. A CPT destaca os estupros de 30 adolescentes yanomami por garimpeiros ilegais, em fevereiro.
Mas a violência sexual é apenas uma das formas empregadas. As mulheres envolvidas em conflitos no campo também sofreram intimidação (20), ameaças de morte (16), agressão (6), criminalização (5), cárcere privado (5), entre outras. A CPT ressaltou que uma mesma pessoa pode sofrer mais de um tipo de violência em uma mesma ocorrência.
Entre os casos de morte por assassinatos houve redução de um ano para outro, baixando de 29 para 14, o que corresponde a 51%. De julho a outubro, no entanto, outros quatro homicídios foram registrados, somando 18 em 2023 até agora. A Amazônia Legal é a região mais vulnerável, com 11 ocorrências, e as principais vítimas são os povos indígenas (6), seguidos bem de perto pelos trabalhadores sem-terra (5). As outras três mortes no primeiro semestre foram de um posseiro, um quilombola e um funcionário público.
Embora tenha caído o número de ameaças de morte – de 78 para 56 - e as tentativas de assassinato - de 49 para 30 -, aumentaram os casos de mortes em consequência (59) e agressões (54).
Quando se analisa quem foram os maiores causadores das violências no campo, os fazendeiros e o governo federal estão praticamente empatados, com 19,75% e 19,33%, respectivamente. Logo abaixo estão os empresários (16,95%), os governos estaduais (13,31%) e os grileiros (8,54%).
TRABALHO ESCRAVO
Os números referentes ao trabalho escravo também fazem parte dos dados compilados pela CPT e revelam um aumento neste ano. Foram contabilizados 102 casos de trabalho escravo. Também cresceu o número de pessoas resgatadas dessa condição. Nos seis primeiros meses de 2023, foram 1.408 resgates, maior quantidade em uma década.
Entre os trabalhadores escravizados, o cultivo da cana-de-açúcar concentrou o maior número, com 532 pessoas, seguido pelas lavouras permanentes (331), braços do agronegócio junto com a mineração (104), desmatamento (63), produção de carvão vegetal (51) e pecuária (46).
AMEAÇAS
Uma liderança indígena do povo da etnia Avá-guarani que vive na Região Oeste do Paraná relatou à FOLHA que desde que a tese do Marco Temporal foi rejeitada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), no final de setembro, a comunidade vem se sentindo mais ameaçada. “A nossa região sempre teve conflito, sempre houve a questão do território, mas agora, com a questão do Marco Temporal, os agricultores voltaram a ameaçar os povos indígenas, principalmente na região de Guaíra e Terra Roxa”, comentou.
A liderança conta ter percebido que representantes dos governos municipais, deputados e senadores têm se empenhado mais para monitorar as atividades nas aldeias e seriam eles os responsáveis por estimular os conflitos entre produtores rurais ligados ao agronegócio e os indígenas. “Ficam espalhando que agora que o Marco Temporal não passou no STF, nós vamos invadir as propriedades deles e os agricultores se voltaram contra nós.”
Os moradores das aldeias se sentem ameaçados. “A gente orienta a comunidade a não sair muito. Na nossa região já aconteceram várias coisas, como tortura, atropelamentos. Imagina hoje, o que não pode acontecer com esse monte de mentiras que estão espalhando. Temos orientado que não saiam muito e até quando forem visitar os parentes em outras aldeias, que não vão sozinhos ou em dupla. Orientamos a sempre ir com mais pessoas. Está bem complicado aqui na nossa região”.
A reportagem tentou ouvir o presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA) do Congresso Nacional, o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), mas ele não respondeu ao pedido de entrevista.