SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O economista Fábio Terra, 35, tem acompanhado as medidas do governo federal para tentar amenizar os efeitos do coronavírus sobre o PIB com um certo sentimento pessoal de desforra.

Presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB), Terra, 35, e seus colegas dessa escola de pensamento, que prega a presença forte do Estado na economia, passaram grande parte da década na defensiva, acossados pela onda liberal.

Agora, veem governos no Brasil e no mundo se renderem à necessidade de liberar recursos públicos e empreender grandes projetos de infraestrutura para tentar evitar uma depressão econômica.

"A agenda ultraliberal do Paulo Guedes está sendo jogada para nocaute, contra as cordas", afirma ele, professor da Universidade Federal do ABC e da Universidade Federal de Uberlândia

Fundada em 2008 e contando com 130 integrantes, a AKB segue a linha celebrizada pelo economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946).

Autor intelectual do "New Deal", conjunto de obras e programas sociais que compuseram a resposta dos EUA à Grande Depressão, nos anos 1930, Keynes defendia que a atuação do Estado é fundamental para criar demanda e reanimar a economia.

*

PERGUNTA - Está provada a frase atribuída ao economista liberal Milton Friedman, de que na crise somos todos keynesianos?

FÁBIO TERRA - Sim. Mas talvez isso seja um problema, ser keynesiano apenas na crise. Keynes era, mais do que um teórico, um homem prático. Era um grande investidor, gestor de fundos, e isso fazia com que tivesse contato com a economia muito além do âmbito teórico. Crise significa que o setor privado está saindo de cena. Nesta hora, o Estado precisa balancear. É ele que vai coletivizar os prejuízos e tomar atitude. A importância do Estado não é quando a crise aconteceu, é evitar que aconteça. É muito importante que o Estado tenha bala na agulha. O que é bem diferente do que aconteceu até agora no Brasil. A gente está muito atrasado.

P - Vivemos nos últimos anos uma onda liberal. Essa crise veio para arrefecer esse movimento, ou é apenas um espasmo keynesiano?

FT - A gente agora vai ter uma disputa ideológica. Já se começa a perceber ruído no governo, com esse plano de investimentos em infraestrutura do Braga Netto, esse Plano Marshall brasileiro, de demanda efetiva estatal a pleno vapor.

P - O eixo da discussão mudou?

FT - Acho que sim. A disputa de narrativas se abriu. O governo Dilma tentou fazer um dirigismo estatal muito forte, que eu não considero de maneira nenhuma keynesiano. Desde então se tentou fazer o avesso do governo Dilma, essa prática mais liberal, que começou com Temer e se acentuou muito profundamente com Bolsonaro.

P - A agenda ultraliberal do Guedes está derrotada?

FT - Ela está de certa forma sendo jogada para nocaute, contra as cordas. Mas não quer dizer que tenha saído de cena.

P - O intervencionismo estatal não funcionou com Dilma, por que funcionaria agora?

FT - Ele precisa ser cíclico. O Estado precisa sair quando a iniciativa privada vai bem. Não pode de maneira nenhuma forçar o acelerador, e foi isso que a Dilma fez a partir de 2012. É preciso estabilidade das medidas de política econômica, seja a política monetária ou a fiscal. Se ela é muito instável, acaba desconstruindo um horizonte de longo prazo.

A Dilma teve um voluntarismo muito grande. Ela determinou taxa de retorno que empresário deveria ter para participar de concessão, por exemplo, fez mudança muito brusca no mercado de energia, entre outras coisas. Emitiu informações muito turvas. As informações têm que ser transparentes e combinadas com o setor privado, porque o setor privado que de fato faz o PIB do país.

P - Quanto tempo esse movimento intervencionista deveria durar na atual crise?

FT - Eu só começaria a retirar as medidas de estímulo quando o setor privado mostrasse recuperação. Não daria um deadline, porque não sei quando os empresários vão estar diminuindo estoques, elaborando planos de investimento, tomando financiamento. É como lidar com um paciente em terapia intensiva e prever tirar o tratamento daqui a três semanas. Não sei se ele vai estar em condições.

P - O sr. tem expectativa de quando começa a recuperação da atividade econômica?

FT - A gente vai bater no fundo do poço este ano e deve permanecer lá até o final do ano. E no primeiro trimestre do ano que vem, se não tivermos novas ondas de contaminação pela Covid, talvez comecemos a sair. Mas tem uma condição, que é o setor público já neste instante estar participando da atividade econômica de maneira mais intensa.

P - Qual sua avaliação sobre as medidas do governo até agora?

FT - A resposta é muito tímida. Os R$ 600 significam 60% da renda que 60% dos brasileiros recebem. É alguma coisa, mas é muito modesto. Na minha avaliação, a gente precisaria caminhar com um salário mínimo e de forma mais alastrada, incluindo pagamento de folha de salários de micro e pequenas empresas. Isso significaria mais ou menos um salário mínimo para 80 milhões de pessoas. Parece muito assustador, mas são R$ 80 bilhões por mês. Se pagar por quatro meses, são R$ 320 bilhões. Isso significa três meses da receita corrente líquida do Brasil.

P - Não é cavar um buraco grande demais nas contas públicas?

FT - O Estado tem três meios de financiamento: endividamento, tributação ou impressão de moeda, que é só em última instância. Temos a conta única [do Tesouro], que tem R$ 1,4 trilhão disponíveis. Temos os ganhos das reservas internacionais. Não significa a venda delas, significa usar os fluxos de rendimento, os ganhos. Neste ano, a gente teve, de janeiro a 20 de março, R$ 312 bilhões de rendimentos. Só esse recurso já daria para custear essa política de pagamento de renda básica para 80 milhões de pessoas.

O que a gente precisa neste momento é diminuir o tamanho de regramentos, porque o momento é excepcional, atípico. Esse recurso da reserva internacional não pode ser usado. Tem que flexibilizar. E a gente além disso vai ter um aumento de endividamento. Precisamos ter uma boa coordenação de expectativa, o governo precisa convencer os investidores de que isso é necessário agora para reanimar a economia.

P - O governo tem dito que no momento seguinte é preciso retomar a agenda de reformas e privatizações. Qual sua opinião?

FT - Algumas são fundamentais e já passaram da hora, como a tributária e alguma reforma administrativa, sobretudo para tornar mais justas as remunerações, gratificações e distribuição de carreira no setor público. Privatização logo após uma crise é muito ruim para o setor público, porque o preço das empresas vai estar muito baixo. Imagina vender agora uma Eletrobras, que tem ação em Bolsa. Tem que esperar um pouco.

P - É o caso de flexibilizar o teto de gastos?

FT - A gente tem visto que meramente fazer o ajuste fiscal não vai levar a crescimento e. Aprovamos a PEC do Teto em 2016, e o crescimento não sai de 1%. Defendo revogar, mas isso não quer dizer que eu seja a favor de irresponsabilidade fiscal. Uma meta de primário correlacionada com a arrecadação tributária é a forma mais racional de administrar as finanças públicas. A PEC do Teto é muito míope, só buscou contingenciar gasto público primário. Não permitiu válvula de escape nenhuma.

P - Como o sr. compara essa crise com a de 1929, que levou à era de ouro do keynesianismo?

FT - O tombo pode ser tão grande quanto o de 1929, mas a permanência dessa queda não será. A gente aprendeu a enfrentar crises. Na de 1929, houve uma demora para uma resposta. O New Deal só veio no meio dos anos 30. Agora, os Estados já estão atuando, como Japão, Alemanha, Itália, França, Espanha, tomando medidas equivalentes a 20% do PIB.

P - O sr. tem amigos economistas liberais?

FT - Sim.

P - E como está sendo saborear esse momento, depois de tantos anos apanhando?

FT - Tem sido legal [risos]. Eu percebo que vários colegas de fato agora dizem: "o Estado tem que agir, não tem jeito, é o Estado que vai ter que gastar". E eles carregam uma preocupação que a gente tem de ter mesmo, que é de qual o momento que o Estado deve começar a diminuir a sua atuação.

P - Conseguiu converter algum liberal ao keynesianismo?

FT - Isso não consegui ainda. Aí é demais, é a mesma coisa que tentar convencer palmeirense a virar corintiano.