Um romance verdadeiro
A psicanálise nos ensina que o amor por si mesmo não é inato, tampouco espontâneo
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
A psicanálise nos ensina que o amor por si mesmo não é inato, tampouco espontâneo
Sylvio do Amaral Schreiner

Oscar Wilde, com sua ironia sofisticada e olhar aguçado sobre a natureza humana, escreveu a frase: “Amar-se é o começo de um romance para a vida toda”. À primeira vista, pode parecer um aforismo leve, um convite à autovalorização ou até um clichê de autoajuda. No entanto, se olharmos mais de perto, perceberemos que se trata de uma verdade psíquica fundamental: amar-se não é apenas um ideal desejável, mas uma condição essencial para qualquer outro amor possível.
A psicanálise nos ensina que o amor por si mesmo não é inato, tampouco espontâneo. Ele não surge da repetição de frases motivacionais ou de um exercício de afirmação diante do espelho. O amor-próprio precisa ser construído, talhado a partir das experiências mais primitivas de cuidado e reconhecimento. Desde os primeiros dias de vida, o bebê depende do olhar do outro para existir. Nas palavras de Winnicott, “o bebê não existe sozinho; ele é parte de uma unidade mãe-bebê”. Se esse olhar inicial for suficientemente bom — ou seja, se a criança for vista, acolhida e compreendida —, um sentimento interno de valor e dignidade poderá se constituir. Mas se esse olhar for fragmentado, negligente ou intrusivo, o sujeito crescerá com uma relação conflituosa consigo mesmo, buscando incessantemente no mundo externo a confirmação de sua existência e de seu valor.
Amar-se, portanto, não é um dom, mas um trabalho psíquico. E talvez seja um dos mais desafiadores, porque implica a capacidade de sustentar-se diante das próprias falhas, de acolher as próprias dores, de não se reduzir aos fracassos e às inadequações sentidas. Muitas vezes, a ideia de amor-próprio é confundida com autoestima inflada ou autossuficiência, quando, na verdade, trata-se de algo mais sutil: um estado de reconciliação consigo mesmo, uma disposição interna para se tratar com dignidade, um compromisso profundo de não se abandonar.
O engano mais comum sobre o amor-próprio está na crença de que ele é um pré-requisito externo para a felicidade, algo que se conquista e depois se possui, como se fosse um prêmio. Mas amar-se não é um destino final, e sim um processo contínuo, um movimento que oscila, que precisa ser reatualizado a cada experiência de perda, rejeição ou frustração. É por isso que muitos afirmam que precisam se amar, mas não compreendem o que isso realmente implica. Como amar-se diante da culpa? Como sustentar o amor-próprio quando nos sentimos inadequados, não reconhecidos ou solitários? O verdadeiro romance consigo mesmo exige a coragem de permanecer, mesmo quando se gostaria de fugir.
Na clínica psicanalítica, é comum encontrar pacientes que buscam desesperadamente o amor do outro para preencher lacunas internas que nunca foram elaboradas. Quando o amor-próprio não está minimamente estruturado, o amor pelo outro torna-se dependência, carência insaciável, necessidade de validação constante. O desejo pelo outro pode ser legítimo e autêntico, mas, sem uma base de amor-próprio, o sujeito se entrega de forma cega e perigosa, esperando que o outro o conserte, o salve ou o defina.
Por outro lado, quando há um mínimo de amor-próprio, as relações com os outros ganham uma nova textura. O amor deixa de ser um pedido e passa a ser um encontro. A solidão não precisa ser um castigo, mas um espaço legítimo de existência. As frustrações tornam-se aprendizados, e não confirmações de uma insuficiência. Sem esse romance interno, todos os outros romances permanecerão frágeis, condicionais, reféns da idealização e da insegurança.
Talvez seja por isso que Oscar Wilde chamou esse amor de romance, pois ele exige envolvimento, presença e, acima de tudo, continuidade. Como todo romance verdadeiro, haverá momentos de desencontro, de decepção e de dúvidas. Mas a grande questão é: você permanecerá? Poderá sustentar-se, apesar de suas próprias sombras? Amar-se, no sentido psicanalítico, não é um exercício de autoindulgência ou um escapismo narcisista. É, antes, um compromisso ético consigo mesmo, a única relação que, de fato, nos acompanhará até o fim.
Sylvio do Amaral Schreiner é psicanalista e atende há mais de 20 anos em Londrina. [email protected]

