Quando o sonho não é seu: frustração de perseguir ideais alheios
Essa distância entre o sonho idealizado e o desejo genuíno cobra seu preço. Ela rouba tempo e vitalidade
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segunda-feira, 05 de maio de 2025
Essa distância entre o sonho idealizado e o desejo genuíno cobra seu preço. Ela rouba tempo e vitalidade
Sylvio do Amaral Schreiner

Vivemos em uma sociedade que cultua perseguir sonhos a qualquer custo. “Corra atrás dos seus sonhos”, escutamos desde cedo, como se bastasse isso para ser feliz. No entanto, há muitos sujeitos adoecidos não pela ausência de sonhos, mas por terem realizado aquilo que acreditavam desejar — e, ao alcançarem o tão esperado “sucesso”, deparam-se com um vazio difícil de nomear. A conquista se torna sem sentido. A vitória, sem sabor. O sonho, por fim, se mostra estranho: nunca foi deles, de fato.
A pergunta que se impõe é: de onde vem esse sonho que tanto nos move? A resposta jamais é simples. A construção do desejo passa por caminhos tortuosos, marcados pelas identificações infantis, pelas expectativas dos pais, pela cultura e pelas defesas que organizam o psiquismo. Muitas vezes, aquilo que um sujeito persegue com tanto afinco — uma carreira específica, uma imagem de sucesso, um tipo de vida — é, na verdade, uma tentativa inconsciente de atender a um ideal que não lhe pertence, mas que se infiltrou silenciosamente em seu mundo interno como um mandamento. “Se eu for isso, serei amado.” “Se eu conquistar aquilo, serei visto.” “Se eu tiver aquilo outro, finalmente serei alguém.”
A idealização é algo potente na mente humana. Ela é necessária em certos momentos do desenvolvimento psíquico, mas pode também aprisionar o sujeito em roteiros rígidos, distantes de sua verdade mais profunda. O que se revela, com o tempo — muitas vezes por meio de sintomas, crises existenciais, ansiedades difusas ou até mesmo estados depressivos — é que houve um desencontro entre a trajetória vivida e o desejo verdadeiro. Como dizemos na psicanálise, o sujeito foi levado por um falso self, uma versão adaptada de si mesmo que se molda às exigências externas, mas que não é sustentada por uma experiência viva de autenticidade.
Essa distância entre o sonho idealizado e o desejo genuíno cobra seu preço. Ela rouba tempo e vitalidade. Deixa o sujeito exausto, ressentido, confuso. A frustração não é apenas com o mundo, mas consigo mesmo. Há o luto pelas oportunidades perdidas, pelas escolhas que não foram feitas, pelas portas que se fecharam em nome de um projeto que, ao final, não sustentou a alma. E, talvez o mais difícil: há a necessidade de reconhecer que parte da vida foi vivida como encenação — e que será preciso começar de novo, desta vez a partir de uma escuta mais honesta e menos idealizada de si.
A análise oferece exatamente esse espaço. Um lugar onde é possível desmontar o ideal, suspender os roteiros herdados, e perguntar: o que, afinal, eu quero? Mas essa pergunta só pode ser feita quando há coragem para se desapegar das falsas certezas e disposição para se aproximar das zonas de sombra, onde mora o desejo ainda não nomeado. Muitas vezes, é apenas no fracasso do sonho idealizado que o verdadeiro desejo começa a se esboçar.
Como disse o psicanalista inglês Winnicott, “é um alívio ser verdadeiro, embora possa ser extremamente doloroso descobrir que fomos falsos.” A dor do autoengano não é pequena. Mas a possibilidade de reconstrução é imensa. Ao reconhecer que aquele sonho não era seu, o sujeito pode, enfim, deixar de atuar papéis e começar a viver — não mais para corresponder às expectativas do outro, mas para habitar a própria existência de forma mais livre e criativa.
Porque viver o sonho do outro é sobreviver. Mas viver o próprio desejo é, enfim, existir.
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A opinião do colunista não é, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina

