Por que tem gente que quando tem sucesso em algo entra em colapso?
A felicidade convoca uma nova identidade. E, como todo nascimento psíquico, ela exige a morte de algo anterior
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segunda-feira, 30 de junho de 2025
A felicidade convoca uma nova identidade. E, como todo nascimento psíquico, ela exige a morte de algo anterior
Sylvio do Amaral Schreiner

É frequente, na clínica psicanalítica, depararmo-nos com o paradoxo de que a felicidade, ao invés de ser acolhida como um alívio desejado, se apresenta como fonte de inquietação, quase um corpo estranho. O sucesso, por vezes tão buscado, revela-se insuportável quando finalmente se instala. O que poderia ser vivido como conquista, plenitude ou descanso, torna-se ameaça. Como se a ausência de dor desorganizasse o Eu mais do que a presença da angústia. Não se trata de masoquismo, embora por vezes isso se manifeste, mas de uma identificação profunda com um modo de ser constituído no sofrimento. Um Eu que se organizou ao redor da dor, da falta, da luta, e que teme desaparecer caso o cenário mude.
Freud, no artigo "Os que fracassam ao triunfar" (1916), captou com clareza esse fenômeno: há indivíduos que, ao alcançarem aquilo que tanto desejaram, entram em colapso. Não por desinteresse ou preguiça, mas porque o triunfo os confronta com uma experiência emocional para a qual não estão preparados. O sucesso desestabiliza uma posição psíquica construída a duras penas, onde a dor tem lugar fixo e, por isso mesmo, conhecido. Quando o sofrimento cede lugar à possibilidade de felicidade, emerge o convite ou a exigência de abandonar uma versão de si mesmo que, embora disfuncional, foi durante muito tempo a única possível.
A felicidade convoca uma nova identidade. E, como todo nascimento psíquico, ela exige a morte de algo anterior. Para algumas pessoas, esse movimento implica trair um pacto inconsciente com figuras internas, muitas vezes idealizadas ou persecutórias, que sustentaram o Eu através do sofrimento. Triunfar pode significar romper com uma lealdade silenciosa a pais que sofreram muito, a ancestrais que não puderam realizar seus desejos, ou mesmo com uma autoimagem de quem “não pode”, “não merece” ou “não sabe viver sem dor”. Por isso, a conquista pode ser sentida como um crime. E o fracasso, sobretudo aquele que se impõe logo após o sucesso, pode ser vivido com certo alívio. Afinal, fracassando, mantém-se o Eu conhecido e, com ele, o mundo interno em sua estabilidade conhecida.
Na clínica, vemos isso quando alguém se deprime ao ser aprovado em um concurso tão desejado ou entra em pânico após se apaixonar de verdade. A realidade nova, promissora, ameaça dissolver o Eu que se sustenta no desamparo. O novo prazer desorganiza porque obriga o sujeito a abrir mão da armadura que o protegia, mas que também o aprisionava. O espaço psíquico, que poderia ser preenchido pela liberdade de ser, aparece como vazio insuportável. E o desejo, quando realizado, pode revelar que o que se desejava era, em parte, o próprio ato de desejar, pois este não exigia mudanças tão profundas quanto o ato de realizar.
A psicanálise, nesse ponto, é convite e contenção. É espaço onde se pode atravessar essa angústia do bem-estar, essa inquietação diante da tranquilidade. Assim, ajuda o sujeito a reconhecer que a felicidade não é uma ameaça, mas uma possibilidade. E que, embora isso exija deixar morrer certos modos antigos de existir, há vida possível e fértil após o luto do Eu antigo. O sofrimento, quando tratado, não precisa mais ser identidade. Pode ser história. E isso é o que nos permite, com o tempo, experimentar a leveza sem culpa, o sucesso sem colapso, a paz sem o medo de estar traindo a si mesmo.
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A opinião do colunista não é, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina

