O que está por detrás das decisões da sua vida?
Ao passo que o sujeito abandona seu processo de autoconhecimento, ele se torna cada vez mais alienado de sua própria história psíquica e afetiva
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
Ao passo que o sujeito abandona seu processo de autoconhecimento, ele se torna cada vez mais alienado de sua própria história psíquica e afetiva
Sylvio do Amaral Schreiner

É curioso observar como o conhecimento de si parece se esvaziar, enquanto uma nova configuração de autoridade, que poderíamos chamar de “algorítmica”, assume um papel de guia para as decisões, preferências e até desejos mais íntimos. A psicanálise, ao introduzir a ideia do inconsciente, propôs que muito do que acreditamos ser nossa vontade consciente na verdade emerge de camadas psíquicas profundas e, em grande parte, desconhecidas. Hoje, no entanto, a relação com esse “não saber de si” parece ter mudado: o sujeito contemporâneo delega essa lacuna não ao seu próprio inconsciente, mas a um sistema externo, sem rosto, que promete conhecer melhor suas inclinações do que ele mesmo: o celular.
O algoritmo que vemos em todos celulares e influenciam o que vemos e deixamos de ver, em sua lógica previsível e calculada, se propõe a decifrar aquilo que o próprio sujeito negligencia em investigar. Na tela do celular, a cada “clique”, “curtida” e “compartilhamento”, desenha-se um perfil que se alimenta dos fragmentos de vida que o sujeito oferece voluntariamente, num ato que mistura compulsão e desejo de pertencimento. O “inconsciente algorítmico” é alimentado pelo que é ostensivamente exposto, e retorna ao sujeito em forma de recomendações e estímulos, como um oráculo que dita o que deve ser consumido, assistido ou desejado. Esse processo, de onde emergem identidades artificiais, reflete a construção de um “eu-corpo” moldado pela lógica da visibilidade e da aprovação.
É possível perceber, então, que o desejo humano, anteriormente entendido como algo complexo e muitas vezes enraizado em fantasias e conflitos psíquicos, começa a ser domesticado por essa autoridade externa, que molda o campo do desejo na direção de um consumo que busca menos o prazer, e mais a adequação a um padrão. Afinal, para o algoritmo, o desejo não é um mistério a ser explorado, mas uma série de ações previsíveis que podem ser reproduzidas para alimentar um sistema econômico e comportamental.
O “eu” do sujeito algorítmico se fragmenta, substituído por uma identidade reflexa, ou seja, uma identidade que responde diretamente ao que é oferecido em sua frente. É uma identidade empobrecida, privada de nuances, pois o algoritmo, ao contrário do analista, não se interessa pelas particularidades e complexidades do sujeito. Na clínica psicanalítica, tentamos explorar essas camadas reprimidas e permitir que o sujeito encontre formas de expressão genuínas. O algoritmo, por outro lado, oferece uma “análise superficial”, como uma espécie de espelho opaco, que só reflete o que lhe convém, sem potencial para permitir descobertas ou transformações.
O impacto disso é significativo. Ao passo que o sujeito abandona o seu processo de autoconhecimento, ele se torna cada vez mais alienado de sua própria história psíquica e afetiva, substituindo o autoconhecimento pela segurança oferecida pelo “gosto padronizado”. Essa alienação de si, talvez, poderia ser compreendida como uma forma contemporânea de “desamparo psíquico”, onde o sujeito se submete a essa nova figura de autoridade, como outrora fazia com figuras de poder tradicionais como pais, por exemplo, mas que agora se apresenta na forma de um sistema cibernético.
A psicanálise, portanto, coloca-se em um lugar de resistência a essa lógica, onde o sujeito é chamado a se escutar e se reapropriar do próprio desejo, não para ser moldado, mas para ser reconhecido. Em vez de se perder na ilusão de um “conhecido” artificial, o sujeito é convidado a reencontrar-se com a complexidade de seu desejo, ainda que essa viagem não ofereça respostas prontas, mas uma jornada de redescoberta contínua.
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A opinião do colunista não é, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina

