O perfeccionismo e a crueldade interna
O desejo de acertar em tudo, paradoxalmente, leva a uma estagnação, pois a única forma de evitar o fracasso é não tentar
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segunda-feira, 10 de março de 2025
O desejo de acertar em tudo, paradoxalmente, leva a uma estagnação, pois a única forma de evitar o fracasso é não tentar
Sylvio do Amaral Schreiner

O perfeccionismo pode parecer, à primeira vista, uma qualidade admirável. No entanto, na escuta psicanalítica, ele frequentemente revela um aprisionamento psíquico, uma defesa contra angústias profundas que impede a pessoa de viver com liberdade e espontaneidade. Para alguns, a busca pela perfeição se torna um obstáculo intransponível, um ideal inatingível que aprisiona o sujeito em um estado de constante insatisfação e paralisia.
A mente do perfeccionista opera sob o domínio de um ideal tirânico. Nada do que faz é suficiente, pois há sempre um erro a ser corrigido, um detalhe a ser melhorado, um resultado que poderia ter sido superior. Esse estado interno de constante avaliação e autocrítica transforma-se em um fardo pesado, paralisante. O desejo de acertar em tudo, paradoxalmente, leva a uma estagnação, pois a única forma de evitar o fracasso é não tentar. Assim, procrastina-se, abandona-se projetos no meio do caminho, evita-se desafios que poderiam proporcionar crescimento.
Essa dinâmica pode se manifestar em diversas áreas da vida. No trabalho, o medo de não atender ao padrão inatingível pode levar à desistência de novas oportunidades. Nos estudos, a sensação de nunca estar suficientemente preparado impede o progresso. Nos relacionamentos, a crença de que nunca se é ‘bom o bastante’ para o outro ou o outro não ser bom o bastante e o receio de errar na interação social fazem com que o perfeccionista se retraia, isolando-se. Dessa maneira, o suposto desejo de excelência se converte em uma forma de evitar a frustração, a crítica e o risco emocional inerente ao viver.
Na raiz desse funcionamento psíquico, encontramos frequentemente um superego severo, que cobra, pune e desautoriza a espontaneidade. Para Freud, o superego é uma instância que se forma a partir das exigências e proibições parentais introjetadas na infância. No caso do perfeccionista, essa instância pode ter assumido uma posição rígida e cruel, exigindo sempre mais, sem espaço para falhas. O que deveria ser um guia interno para a vida torna-se um tribunal implacável, onde o sujeito está sempre em dívida consigo mesmo.
O psicanalista inglês Winnicott nos ajuda a compreender esse fenômeno ao diferenciar o "self verdadeiro" do "self falso". O perfeccionista, ao buscar incansavelmente atender a padrões idealizados, pode se afastar do que lhe é próprio, espontâneo e autêntico. Muitas vezes, essa busca pela perfeição não é um desejo genuíno, mas uma tentativa de corresponder a expectativas externas – sejam elas da família, da cultura ou de figuras internalizadas que funcionam como modelos impossíveis de alcançar. Nessa lógica, a criatividade, a experimentação e o prazer são sufocados pelo medo da inadequação.
A psicanálise nos ensina que a saída desse aprisionamento passa pela tolerância ao erro, pela aceitação da própria humanidade e pelo reconhecimento de que o valor de uma pessoa não está na perfeição, mas na capacidade de seguir adiante, apesar das falhas. A análise pode permitir que o sujeito se depare com seus medos mais profundos – o medo de decepcionar, de ser criticado, de se sentir pequeno e vulnerável – e, a partir daí, construir uma nova relação consigo mesmo. É no espaço da escuta analítica que, pouco a pouco, pode-se encontrar um jeito mais vivo, criativo e possível de existir no mundo, sem a necessidade de ser impecável para ser digno de existir.
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A opinião do colunista não é, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina

