No ano em que celebramos o centenário e duas décadas de nascimento de Nise da Silveira (foto), temos a chance de refletir sobre os frutos que colhemos de seu legado e a força de seu gesto inaugural na história da saúde mental no Brasil. Em uma época dominada pela psiquiatria asilar e suas práticas violentas de contenção, Nise ousou apontar que havia outro caminho. Seu olhar clínico, marcado por uma profunda sensibilidade para com o sofrimento psíquico, desafiou crenças estabelecidos e abriu espaço para uma nova compreensão do adoecimento mental, da subjetividade e da potência transformadora da expressão artística.

Formada em 1926 pela Faculdade de Medicina da Bahia, única mulher em sua turma, Nise trilhou um percurso marcado por enfrentamentos institucionais e pela coragem de sustentar uma escuta genuína àqueles que haviam sido relegados ao esquecimento nos hospitais psiquiátricos. Seu contato com a psiquiatria tradicional não a convenceu: recusar-se a aplicar eletrochoques e lobotomias não foi apenas um ato de resistência ética, mas um compromisso profundo com a dignidade humana.

A grande virada de sua trajetória se deu no momento em que transformou o setor de terapia ocupacional do Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro, em um espaço de livre criação. Sob sua orientação, pacientes que antes eram vistos como casos crônicos passaram a expressar, por meio da pintura e da escultura, o mundo interno que permanecia aprisionado pelo silêncio institucional. A arte, para Nise, não era mera distração, mas um campo fértil de revelação da vida psíquica. Seu contato com as ideias de Carl Gustav Jung fortaleceu essa concepção, permitindo-lhe entender que, nas produções de seus pacientes, emergiam símbolos universais, arquétipos que revelavam narrativas profundas sobre a psique humana.

Os desdobramentos desse trabalho são imensuráveis. Seu encontro com o pintor Almir Mavignier levou à criação do Museu de Imagens do Inconsciente, um acervo vivo que testemunha a riqueza do psiquismo humano e a força criativa presente mesmo em estados psíquicos de extrema vulnerabilidade. Se hoje avançamos no reconhecimento da arte como via terapêutica, se a humanização do cuidado em saúde mental é uma pauta inegociável, devemos isso, em grande parte, à insistência de Nise em romper com os grilhões do manicômio e reconhecer a subjetividade dos que ali estavam confinados.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira bebe dessa fonte. A valorização dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a luta pelo fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos e a construção de uma rede de cuidados que respeita a história e o desejo dos pacientes são frutos diretos de uma semente que Nise plantou em um terreno árido. Ainda há desafios, ainda há retrocessos que ameaçam os avanços conquistados, mas o horizonte que ela nos apontou segue vivo e pulsante.

Ao celebrarmos seus 120 anos, não apenas reverenciamos uma pioneira, mas reafirmamos o compromisso ético com uma clínica do cuidado, da escuta e do respeito. Nise nos ensinou que a loucura não é ausência de sentido, mas um idioma próprio que precisa ser acolhido, traduzido e escutado com seriedade.

Sylvio do Amaral Schreiner é psicanalista e atende há mais de 20 anos em Londrina. [email protected]