Entre perdas visíveis e ganhos invisíveis: a tal da meia-idade
A meia-idade pode tornar-se travessia: uma passagem que, quando elaborada, nos permite acessar a liberdade de viver com mais autenticidade
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 09 de junho de 2025
A meia-idade pode tornar-se travessia: uma passagem que, quando elaborada, nos permite acessar a liberdade de viver com mais autenticidade
Sylvio do Amaral Schreiner

Muito se fala sobre a chamada “crise da meia-idade”, expressão popular que tenta dar conta de um mal-estar peculiar vivido, em geral, a partir dos 40 ou 50 anos. Esse momento parece atingir, em algum grau, todas as pessoas, independentemente da geração a que pertençam. Nascidos no pós-guerra, nos anos 70, 90 ou já no século XXI, todos, mais cedo ou mais tarde, se verão confrontados com a mesma realidade: a juventude não é eterna e o tempo não negocia com o desejo. Mas afinal, por que esse atravessamento psíquico é tão universal e o que ele nos convoca a trabalhar internamente?
Quando o sujeito adentra a chamada meia-idade, ele se depara com um movimento psíquico inevitável de revisão e reconfiguração. O corpo, que durante anos sustentou uma experiência de potência, agilidade e desejo de expansão, começa a emitir sinais de cansaço, de limite. Aparecem dores, diagnósticos, e junto deles uma consciência mais nítida da finitude. Não se trata de um simples declínio físico, mas da emergência de um novo olhar sobre o tempo e sobre si mesmo. A ilusão onipotente da juventude, necessária à construção da identidade no início da vida adulta, começa a ruir. A psicanálise compreende esse processo como um luto: um luto pelo corpo que se foi, pelos ideais inalcançados, pelos caminhos não trilhados. E, como todo luto, ele demanda trabalho psíquico, elaboração e transformação interna.
Há momentos na vida em que somos tomados por uma “revolução íntima”, e não é por acaso que a meia-idade coincide, muitas vezes, com um chamado ao reexame da vida. É nesse ponto do percurso que o sujeito começa a se perguntar: o que eu fiz da minha vida até aqui? E o que ainda posso fazer com o que me resta? Perguntas que não encontram respostas fáceis, mas que, se bem acolhidas, podem se tornar motores de crescimento psíquico. O amadurecimento emocional implica tolerar a ambivalência e suportar as perdas sem se destruir. A meia-idade nos exige exatamente isso: capacidade de renunciar à onipotência para acessar formas mais realistas, profundas e satisfatórias de viver.
Entretanto, nem todos estão prontos para esse enfrentamento. Muitos tentam escapar da dor psíquica promovendo uma espécie de “negação do tempo”, buscando reviver a juventude perdida por meio de roupas, comportamentos, discursos ou aventuras impulsivas. Essas tentativas de manter a juventude à força, muitas vezes encenadas como se fossem renascimentos, denunciam uma recusa em elaborar as perdas. Só quem pode tolerar não ser mais o que foi, poderá vir a ser algo novo. E isso não significa resignação, mas transformação.
Por outro lado, se a juventude nos oferece vigor, a maturidade pode nos oferecer profundidade. Com o acúmulo das vivências e com a lapidação dos afetos, torna-se possível construir um olhar mais generoso e lúcido sobre a vida e sobre nós mesmos. A criatividade psíquica, muitas vezes adormecida na repetição dos papéis sociais, pode encontrar novo fôlego quando o sujeito se autoriza a mudar. A meia-idade, então, pode deixar de ser apenas uma crise para tornar-se travessia: uma passagem que, quando elaborada, nos permite acessar a liberdade de viver com mais autenticidade, reconectados com os próprios desejos, agora menos idealizados e mais possíveis.
Não há como evitar esse ponto em alguma momento da vida. Seja qual for a geração, todos serão um dia convocados a esse trabalho de reconciliação com o tempo e com a própria história. E esse convite, embora muitas vezes doloroso, pode ser também um presente: a chance de viver o restante da vida não como repetição do que passou, mas como inauguração do que ainda pode ser criado. A maturidade se dá quando somos capazes de brincar com o que a realidade nos dá e isso inclui a passagem do tempo. O fim da juventude pode ser um verdadeiro começo.
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A opinião do colunista não é, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina

