Toda vez que “vemos” uma situação não significa que estamos vendo a verdade última. Nossas experiências anteriores, nossos pontos cegos, nossas opiniões, nossas expectativas podem todos atrapalhar nossa visão e fazer a gente ver através de uma certa distorção e não com nitidez.

Na nossa vida diária essa falta de nitidez pode gerar mal-entendidos e situações constrangedoras, bem como também cria uma visão limitada dos eventos. Quantas brigas já não aconteceram, quantos julgamentos errôneos já não fizemos, justamente porque não víamos claramente todo o panorama?

Se na vida cotidiana não ver nitidamente pode ser prejudicial imagina no trabalho clínico? Quando um psicanalista ou qualquer outro profissional como um psiquiatra ou psicoterapeuta não está livre de sua “visão” contaminada pode criar situações muito prejudiciais ao tratamento de seus pacientes. Poderá “ver” não o que está mais próximo da situação de seu paciente, mas verá outra coisa que pode estar distante e ser enganoso. Isso num processo clínico é grave.

Não é à toa que numa formação séria para se tornar um psicanalista, por exemplo, é necessário seguir toda uma série de condições que permitam o psicanalista se desenvolver a contento para estar apto a atender com dignidade e profissionalismo. Cursos que prometem formar psicanalistas em fim de semana sem exigir muito são armadilhas que enganam e trazem imensos prejuízos à saúde mental e bem-estar de muitos pacientes.

Nem todos sabem, mas nas instituições respeitáveis que formam psicanalistas é exigido de seus candidatos não só passar por toda uma grade teórica e de supervisões clínicas, mas acima de tudo passar pela própria análise pessoal que consiste de 4 sessões semanais com um analista competente para essa função por no mínimo 5 anos. Sem isso a formação corre o risco de ficar comprometida e o profissional ficar “cego” e não conseguir ver claramente.

Essa exigência da análise pessoal para alguém tornar-se um psicanalista é precisamente para evitar que o analista crie “distorções” em sua compreensão de seus pacientes. Na Bíblia mesmo se diz que antes de repararmos no cisco no olho do próximo devemos primeiro tirar a trave do próprio olho. Isso quer dizer que se temos algo que impede nossa visão de maneira mais humana e verdadeira ficamos com deficiências que impedem ver o todo. Impede de nos aproximarmos e realmente fazermos a diferença com os pacientes que nos procura.

Bion, psicanalista inglês, utilizou e incentivava a prática clínica que ele chamou de ‘sem memória e sem desejo’. Em linhas muito gerais isso implica em o psicanalista atender seus pacientes sem apegos às experiências passadas suas ou que aconteceram com outras pessoas ou em outros contextos e sem desejos sobre como o paciente deveria ser no futuro. Com isso se removeria os entraves na visão do psicanalista para ele estar mais livre para poder ver, dentro do possível, a realidade de seu paciente. Para se ser um psicanalista digno do título se faz necessário aprender a tirar o melhor possível os entraves da própria visão.

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